A cidade nas manchetes: pesquisa, notícia e imaginação
"Ville Radieuse": plano de Le Corbusier para Paris, de 1924. Sim, ele queria demolir tudo.
60 dias de quarentena, estou quase perdendo a conta. Escrever uma newsletter sobre a vida pública urbana enquanto ela está proibida tem sido um exercício de imaginação sobre o futuro, mas também de encontrar a urbanidade que existe na porta da nossa casa e dentro dela. Pra ler as edições anteriores, clica aqui no letters archive.
Encontro de pessoas, espaços públicos, serviços locais, transporte de massa. Alguns dos principais parâmetros de qualidade da vida urbana nas últimas décadas foram postos em cheque com a chegada da pandemia. Nas últimas semanas surgiu uma infinidade de debates, reportagens e reflexões acerca do que será a vida urbana no horizonte próximo e o que será da cidade do século XXI - que pelo visto, começa agora, com big data, sustentabilidade mobilidade urbana na ordem do dia. Tentando organizar a avalanche de informações que está projetando nosso futuro, separei para essa edição três pistas sobre o que está por vir.
1. Debates sobre densidade urbana
New York Times: "Será que nós vamos gostar de voltar direto para as aglomerações?" (Will You Want to Go Straight Back Into the Crowd?"
Nesse artigo, o professor Richard J. Williams relembra que a gripe espanhola de 1918 foi um dos cenários onde nasceram as ideias urbanas do Movimento Moderno, difundidas século XX adentro, inspirando inclusive a construção de Brasília. Williams conta como a retomada do espaço público urbano na virada mais recente de século foi uma resposta à urbanização moderna e rodoviarista do séc XX, que por sua vez respondia ao cenário insalubre do início do século XX, destacando a gripe espanhola no cerne das preocupações higienistas. Com isso, questiona: nosso 2022 será de alguma forma parecido com 1922? A sombra da Ville Radieuse (foto de capa) - projeto de Le Corbusier para uma Paris medieval e suja - voltaria a passar pelos planejadores urbanos contemporâneos? A meu ver, o projeto moderno teve um contexto de difusão e implantação entre elites intelectuais da época que hoje dificilmente iriam se opor à retomada da vida pública urbana, mas quem sabe passemos de fato a valorizar mais a implantação de praças, parques e áreas abertas de encontro em detrimento de shoppings centers, por exemplo. A abertura de ruas para a circulação de pedestres já está acontecendo, como vemos a seguir.
2. Ruas abertas para uso exclusivo de pedestres
Aqui, dois textos discutem como a abertura do asfalto para pedestres e ciclistas possibilita mais espaço de circulação sem grandes aglomerações, e tem sido adotada como medida em diversas cidades mundo afora (sim, é o mesmo que acontecia na Avenida Paulista, aos domingos e feriados, em sp).
A Folha de São Paulo destaca os Angeles, cidade que conhecidamente prioriza o espaço do carro, tem adotado medidas para que as pessoas tenham mais segurança em voltas às ruas durante a pandemia, com mais espaço para manter o distanciamento:
"A explicação é uma questão de espaço: em Los Angeles, as calçadas são estreitas mesmo em avenidas famosas, o que dificulta o distanciamento social até para quem leva o cachorro para passear. Por isso, os moradores organizaram uma campanha para pedir que a prefeitura fechasse algumas ruas para os carros, deixando o asfalto livre para quem quer caminhar ou pedalar".
Várias outras cidades americanas, incluindo Nova York, adotaram medidas semelhantes. No Archdaily, relatos de distintas alternativas que cidades estão adotando para ampliar o espaço de circulação de pedestres e bicicletas: cones para novas ciclofaixas, gratuidade no aluguel de bicicletas, mais espaço livre para pedestres e ciclistas.
3. Saúde pública como pauta de planejamento urbano
No Common Edge, o arquiteto e pesquisador Ashraf M. Salama explica como parâmetros de saúde pública vão passar a fazer parte da pauta dos planejadores urbanos. A entrevista cita seu artigo sobre implicações sócio-espaciais do coronavírus, fruto de uma pesquisa sobre cidades do sul global. Em relação ao ensino de arquitetura, o professor Salama aponta que diversos cursos no mundo já incluem disciplinas sobre como lidar com situações emergenciais, como catástrofes climáticas. Mesmo assim, é importante ficarmos de olho nas propostas políticas que podem vir a usar essa situação para ampliar ainda mais a disparidade social nas cidades, pontuando, por exemplo, a remoção de favelas (já vimos isso acontecer no Rio de Janeiro).
4. Modos de produção: estamos cultivando a próxima pandemia?
Nesse artigo publicado pelo Outras Palavras, a jornalista argentina Soledad Barrutti argumenta que, através das ambições do agronegócio, estamos cozinhando a próxima pandemia hoje, em nossas casas. A Juliana Gomes, outra jornalista atenta à essas questões, está constantemente avisando das medidas legais que estão sendo aprovadas nesse governo em favor de uma agricultura predatória e do nosso lento envenenamento. Cidades totalmente alienadas dos seus campos produtivos de alimentos estão sendo cada vez mais questionadas, e alternativas de cultivo e distribuição urbanas e locais são cada vez mais o caminho para que a pós-pandemia não seja apenas um intervalo entre adoecimentos:
"As pragas não são uma novidade, mas estão avançando: duzentas novas doenças infecciosas zoonóticas surgiram nos últimos trinta anos, e nenhuma é resultado da nossa má sorte" (Barrutti).
Uma ótima viagem a todos! :)
:Dicas a bordo:
~ Fotos do primeiro dia do hospital de campanha do Ibirapuera
~ Na Espanha, crianças saem às ruas depois de 40 dias de confinamento
~ Paris é suja? Revoltas urbanas, saneamento e urbanização por Henri Bugalho no youtube
~ Porque empresas de micromobilidade deveriam ser públicas
~ Como doenças do passado transformaram cidades
Até a próxima,
Luísa
PS. Quer ler as cartinhas antigas? Vai no View Letters Archive. Gostou dessa newsletter e quer compartilhar? Esse é o link. Se quiser responder à essa cartinha, é só responder ao e-mail mesmo, e é muito bem-vindo :)