A falta que a cidade faz
Há duas semanas, falávamos das eleições em Paris, algo ia mal pela Ásia, mas não imaginávamos que tão logo estaríamos de quarentena, enfrentando uma calamidade na saúde pública global. Essa semana essa newsletter completa um ano (!!!), mas só muito recentemente eu tomei coragem pra divulgar esse trabalho nas redes sociais. Como tanta gente está em casa procurando coisas para se entreter, quer me ajudar a divulgar?
Nessa edição comemorativa de um ano e eu fiz uma edição diferente, com uma entrevista - algo que queria fazer há algum tempo. Conversei com minha amiga Juliana Freitas sobre crianças e cidades, sobre a importância de experimentar o espaço público. Que ironia, justo agora que estamos todos - crianças, adultos e idosos - proibidos de fazê-lo. Nessas horas talvez seja quando mais aparece a falta que a cidade faz. A Juliana tem dois filhos pequenos e sempre conversamos sobre as formas de mostrar o mundo à criança, de um ponto de vista do coletivo, da vida em comum. Agradeço imensamente à ela por encontrar tempo de me responder com tanta atenção e à todos os leitores por esse ano, pela presença, comentários e trocas.
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Entrevista com Juliana Freitas, psicóloga, 28 anos, mãe do Nico, de 4 anos e do Miguel, de 3 meses.
Parte 1
1. Você costuma sair com seus filhos para brigar ou passear em espaços públicos?
Sim, sempre, mas bem menos do que gostaria. Depois que Nico foi crescendo e agora com duas crianças, foi ficando cada vez mais desafiador ocupar os espaços. Inclusive os espaços que se dizem "para crianças".
Além disso tento - na medida que meu bom humor permite - ocupar as ruas com as crias cotidianamente. Quero dizer: voltar a pé para casa, andar pelo bairro, fazer mercado, ir na farmácia. Essas pequenas atividades diárias são para a criança não só um passeio como uma forma de conhecer a vida e a cidade.
2. Você vê muitos pais e mães levando seus filhos também?
Eu vivo em um bolha chamada Zona Oeste de São Paulo, então sim, eu vejo. Até por essa ser uma região com fácil acesso a SESCs, muitas praças bem cuidadas, livrarias de rua, bibliotecas... Mas quando você vai em uma biblioteca você percebe o quanto esse número ainda é mínimo, se tiver uma outra criança já é muito. Na minha rua, por exemplo, quase todas as crianças não circulam, nem mesmo no parque público que temos no fim da rua.
3. O que te impede de sair?
A preguiça. Dar rolê com criança dá o maior trabalho. Seja porque criança dá trabalho e pronto, mas principalmente porque uma coisa é lidar com as intercorrências normais do dia de uma criança em casa e outra é lidar com uma plateia julgadora atirando pedras. Crianças querem correr, querem explorar os limites, querem desafiar. Crianças falam alto, fazem barulho, mexem nas coisas, choram quando se chateiam ou estão cansadas. Crianças se jogam no chão, fazem "birra". Tudo isso é chato de ver? É. Mas faz parte.
E a maioria dos lugares não "suporta" isso.
Por exemplo: o lugar se diz para criança mas não pode por a mão em nada, não pode correr, não pode entrar e sair. Acho que quem projeta as coisas o faz para crianças ideais super "bem educadas". Veja a quantidade de parquinhos infantis nas praças que não são cercados, que dão direto em uma rua cheia de carros. Você não pode contar que uma criança de 2 anos não vai correr atrás de um pombo e ser atropelada, mesmo que você esteja olhando.
4. Você encontrou escolas e outros equipamentos públicos nas proximidades da sua casa? Qual a importância de ter creches, escolas, parquinhos, postos de saúde, biblioteca, entre outros, nas vizinhanças?
Acredito que não faz nenhum sentido termos que gastar metade do dia no trânsito para ir de um lugar ao outro, quando poderíamos ter todas as necessidades básicas atendidas localmente. A gente fez uma escolha, privilegiada, de morar próximo ao trabalho e não ter carro. Com isso conseguimos fazer tudo de bike, a pé ônibus ou Uber.
A escola do Nico é privada e foi escolhida principalmente por ser muito próxima de casa. É desafiador, mas incrível andar com ele na Teodoro Sampaio todos os dias. Também voltamos a pé das atividades extras (antes ele ia na ACM, agora faz Kung Fu). Vamos ao posto de saúde do bairro, na biblioteca pública que fica ao lado da escola, nas livrarias (ótimo espaço de brincar) e aos SESCs (divos supremos da cultura em SP). Perto de casa não há bons parques públicos que sejam viáveis de frequentar todo dia, mas a vida da criança pode ser uma brincadeira em qualquer lugar, inclusive na ida ao supermercado, farmácia, quitanda. Acredito que seja justamente essa inserção no cotidiano real da família que formará cidadãos autônomos e responsáveis.
5. Como você vê o uso do transporte público com crianças? Quais as principais vantagens e desvantagens?
A maior vantagem do uso do transporte publico é a inserção na cidade e a construção de uma postura política integrada ao coletivo. Antes de discutir isso, é preciso lembrar do lugar de privilegio que só o fato de se questionar sobre e ter o transporte publico como opção se constitui. Em um cidade - e um pais - em que todo mundo que pode anda de carro, há coisas absurdas como crianças de 3 anos de idade que NUNCA caminharam na rua - no máximo circularam em cima de um carrinho de bebe (não é lenda, eu conheço),talvez seja precipitado pensar em vantagens do uso do transporte publico com crianças. Talvez primeiro devêssemos repensar nossas próprias escolhas de estilo de vida. Uma criança só aprendera a partir do que vivencia, da cultura familiar em que esta inserida. Não adianta falar #umcarroamenos e ter dois carros na garagem para não precisar passar pelo rodizio.
Na pratica a escolha pelo transporte publico pode ser bem desconfortável, principalmente levando crianças, mochilas, sacolas. As vezes é preciso mais de um ônibus para ir ao bairro vizinho, e o percurso que é feito em 15 minutos de carro leva 55 de ônibus com uma caminhada de 10 de pura ladeira. Não vou ser hipócrita: quando posso não faço. Uso o transporte público nas muitas vezes que ele é melhor que o carro: metrô, corredor de ônibus. E ando a pé, mesmo com crianças e sacolas.
Da esquerda pra direita: 1. Apresentação teatral no meio da Av. Paulista; 2. interagindo com moradores da rua; 3. Andando na rua de casa; 4. Cabaninha feita com criança que conheceu no Largo da Batata, enquanto a mãe da criança trabalhava vendendo boinas. Fotos da Juliana.
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Continuamos na próxima edição.
Uma ótima viagem a todos! :)
:Dicas a bordo:
~ Ser criança é natural: um instagram sobre crianças e natureza s2
~ Carona a pé: incentivando adultos e crianças a ir a pé pra escola
~ Guia fora da casinha: porque "infância é chão que a gente pisa a vida toda" s2
~ O maravilhoso trabalho da artista Louise Bourgeois na série "mulher-casa" (Femme-maison)
~ Cidades que constroem espaço para idosos
~ Transporte ativo e sedentarismo: uma questão de cotidiano, cidades e saúde pública
Até a próxima,
Luísa