A força do olhar estrangeiro
Capa original de "Nova York Delirante", com a ilustração de Madelon Vriesendorp* intitulada "Delito Flagrante".
Na década de 1970, um homem holandês formado em cinema e arquitetura viajou para a cidade mais maluca do mundo, Nova York e mergulhou em uma pesquisa que marcou a história da arquitetura. E do pensamento urbano. E da cultura metropolitana. Rem Koolhaas escreveu "Nova York Delirante: um manifesto retroativo", e, junto com Madelon Vriesendorp, sua esposa, artista e sócia fundaram um dos escritórios mais vanguardistas desse final do século XX, mas essa história não foi a primeira vez que um choque de culturas produziu obras marcantes.
Denise Scott-Brown, sul-africana estudando Filadélfia, levou seu futuro marido Robert Venturi para Las Vegas, viagem que deu origem à outra pesquisa marcante da década de 1970, publicada com Steven Izenour. Comparando a strip com o centro histórico de Roma (pois sim) eles mostraram que a arquitetura também tinha uma função comunicativa, que tantos arquitetos modernos deixaram de lado.
Reyner Banham, britânico, escreveu sobre Los Angeles também quando ali ninguém via muito de arquitetura. Ele entendeu a relação da cidade com as pistas de automóvel como uma verdadeira ecologia, uma delas, que junto com "subúrbios", "encostas" e "planícies", ele expõe no livro "Los Angeles: a arquitetura de quatro ecologias", publicado em 1971. Só mesmo um arquiteto nascido em uma pequena cidade na Inglaterra para se maravilhar com uma estrutura urbana que condiciona as pessoas a nunca andarem a pé.
Eu não podia deixar de mencionar, claro, Carlos Eduardo Le Corbusier, o arquiteto viajante mais conhecido do século XX. No Rio de Janeiro, pensou que a cidade poderia ter sua natureza mais valorizada se todas as pessoas morassem em um prédio fita que cortasse a zona sul. Previamente conhecido como Charles-Edouard Jeanneret, esse arquiteto viajou, desenhou, escreveu muito, projetou e divulgou para o século XX uma nova forma de viver e construir. Nascido em 1887 na Suíça e morto em 1965 na França, ele definitivamente não teria sido o mesmo arquiteto de espírito livre sem suas experiências na Itália, Alemanha, Argentina e Brasil, para citar algumas. Enquanto a Europa destruía suas cidades com bombas e mais bombas. Em 1929, Corbusier embarcou no avião de ninguém menos que Antoine de Saint-Exupéry, o célebre autor do "Pequeno Príncipe", que era aviador.
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Quando morei em Paris, meu vizinho era um irlandês de quase 2 metros de altura nascido em uma vila do interior. Um lugar em ruínas, abandonado na época da crise das batatas, onde haviam sobrado quatro casas. Quatro. Ele cresceu ali, em meio à construções abandonadas e uma paisagem idílica, andando um pouquinho chegava no povoado mais próximo, que devia ter umas cem casas, ele me disse. A primeira vez que ele foi à Londres foi com onze anos. Acho que perdi um bom tempo tentando imaginar como foi para esse menino ver uma metrópole pela primeira vez.
Entre 2010 e 2011, eu fiz o caminho contrário: tendo crescido entre duas grandes cidades onde trajetos de 2 horas de carro era um tempo bem normal para chegar em algum lugar, eu fui morar em uma cidade pequena na Espanha. Foi um choque poder andar a cidade inteira a pé em meia hora (ou pelo menos seu núcleo histórico, que é o maior e mais conservado da Europa), marcar passeios pra ver o quanto a cidade era bonita, sentar na praça sem ter que comprar nada, usar uma bicicleta pública (naquela época era pura inovação). Escrevi na internet pela primeira vez naquela época.
Hoje eu abro o jornal e vejo uma série de países conservadores diminuindo a permissão da presença de estrangeiros em seus territórios. Acho que esqueceram seus próprios cidadãos que emigraram por aí. Ou das guerras dificuldades que eles mesmos criaram em outros países. Ou da potência transformadora do olhar estrangeiro, essas histórias de atravessamentos de fronteiras que explodiram o imaginário de pessoas em todas as épocas.
Uma ótima viagem a todos! :)
:Dicas a bordo:
~ "Mas 'Aprendendo de Las Vegas' não é sobre Las Vegas": excelente entrevista de Denise Scott-Brown no podcast 99% Invisible
~ Uma fotógrafa faz esses registros maravilhosos no Brooklyn sobre como as pessoas estão usando as máscaras para expressar suas culturas
~ "Barrio America": uma entrevista com A. K. Sandoval-Strausz, o autor desse livro sobre como os imigrantes latinos salvaram as cidades americanas
~ Em entrevista para a Time Magazine, Rem Koolhaas fala como o os espaços públicos deveriam ter sido repensados bem antes do coronavirus, para promover uma melhor qualidade de vida urbana.
~ Todos os sonhos precisam ser imaginados: as lindas colagens de casas que o Austin Kleon fez para sua companheira
Até a próxima,
Luísa