A gente não quer só comida
William Heath Robinson - artista inglês que viveu entre os séculos XIX e XX - em "Como viver em um flat"
Recentemente, em meio à pandemia, perdemos mais uma pessoa importante para as artes: o escritor Rubem Fonseca. A causa do falecimento não foi o covid-19, mas a situação impediu que ele recebesse as homenagens que merecia. Eu não me lembro de ter lido Rubem Fonseca. Talvez tenha pego aquele conto famoso do reveillón alguma vez, mas não tenho essa memória fresca. O que fiz para reparar essa minha lacuna literária - enquanto não leio sua obra em primeira mão - foi pegar alguns olhares emprestados, conhecer a obra dele através da leitura de outras pessoas (separei algumas aqui nas dicas da cartinha de hoje). Pelo que percebi, Rubem Fonseca conseguiu a proeza de agradar ambos público e crítica. Foi policial e imprimia na sua escrita uma boa dose de violência. Aí, não teve quem não reconhecesse a brutalidade do que ele narrava: em sua época o brasil ficava urbano e a violência aparecia na porta de cada um.
Essa é a principal característica que aparece nas interpretações sobre esse autor: ele praticamente inaugura uma literatura urbana no país, em uma época em que de fato o Brasil via uma transição de sua estrutura rural para a urbana. Vamos às datas: “Os prisioneiros” é de 1963, “Feliz Ano Novo”, de 1975, e foi censurado pela ditadura, “O Cobrador”, de 1979, e por aí vai. Em 1960 Brasília foi inaugurada (e esse ano completa aniversário), em 1974 São Paulo inaugura o primeiro metrô do Brasil, em uma cidade já muito engarrafada. João Paulo Cuenca, outro escritor dedicado à cena urbana, que eu admiro bastante, disse que Rubem Fonseca influenciou até quem não o leu. Não duvido. A literatura arte rege uma influência nas ideias das pessoas como coletivo, faz falta sempre, mas especialmente nos dias de hoje. Ajuda a processar um mundo confuso, a pescar as sutilezas, a identificar as pistas de saída que estão escondidas, a traduzir o dito e o não dito.
Sem essa interpretação de texto, a navegação literal pelos mares da cidades tem danos concretos: o presidente dos EUA “brincou” que para eliminar o coronavírus bastava ingerir detergente e não faltou gente achando que poderia ser uma boa ideia. Pois sim, ele não entendeu seu lugar e ninguém entendeu a piada. Nosso infeliz presidente contratou um palhaço para imitar a si mesmo em fala oficial. Emanuel Aragão, ator e psicanalista, e Maria Flor, atriz, tiveram que explicar o que é um ator atuando e porque isso é diferente de ameaça política. Confusões. Inversão de papéis. Rubem Fonseca me deixou ansiosa por conhecer sua versão do submundo das ruas do Rio de Janeiro, mas, mesmo sem o conhecer, me deixou ainda mais alerta para os dados colaterais de um mundo sem metáforas, sem um lugar para a imaginação e interpretação do mundo, sem literatura.
"A traição das imagens", obra de 1928, de René Magritte, artista francês, onde consta "isso não é um cachimbo".
Uma ótima viagem a todos! :)
:Dicas a bordo:
~ Walter Salles (Revista 451) e João Paulo Cuenca (Folha de São Paulo) sobre Rubem Fonseca
~ O podcast da Folha Expresso Ilustrada também discute o autor
~ Rita von Hunty explica como a poesia e os slams traduzem o espírito do tempo como poucas artes
~ A rua do futuro segundo 7 especialistas
~ Mapas caseiros muito lindos feitos por pessoas em quarentena
~ "Não cuspa!" Posteres históricos de pandemias
~ Brasília completa 60 anos e a BBC fez essa reportagem bonita
~ O jornal Nexo também contou a história da capital
Até a próxima,
Luísa
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