Atrás do porto tem uma cidade - parte 2
Na semana passada, visitamos a polêmica Região Portuária do Rio de Janeiro com a arquiteta e urbanista e minha amiga Clara Buckley, que estudou o tema das memórias subterrâneas" em seu Mestrado. Hoje seguimos com a segunda parte da conversa. Essa é a última cartinha do ano e desejo que 2021 seja de muita força e esperança para todos nós. Vamos juntos!
O porto do Rio Janeiro e suas memórias - Entrevista com a arquiteta e urbanista Clara Buckley
Parte 2 (a primeira parte você pode ler aqui):
Como a "revitalização" da região portuária do Rio lidou com as memórias daquela área?
A região portuária do Rio tem um histórico de ações que visavam o enobrecimento e o consequente embranquecimento da região que começa no século XIX. O apagamento do Cais do Valongo pela construção do Cais da Imperatriz foi um meio de silenciar as lembranças traumáticas do tráfico de escravizados através da remodelação do sítio para a recepção da imperatriz, assim como o progressivo apagamento de sítios de herança africana. Esse processo teve continuidade com a implementação do plano de Pereira Passos no início do século XX, que foi um projeto higienista de cidade que culminou em remoções em massa da população de baixa renda e o aceleramento da gentrificação na área. Características essas comuns ao projeto Porto Maravilha, uma Operação Urbana Consorciada que hoje se revela um fiasco depois de 10 anos do início de sua implementação. Eu diria então que a forma que o poder público lidou com as memórias da área foi através de omissão e esquecimento.
Como você avalia a construção do Museu do Amanhã?
O Museu do Amanhã é sempre uma questão controversa para nós arquitetos... Para além da minha opinião pessoal sobre a qualidade da sua arquitetura, vale dizer que no Projeto Porto Maravilha de todo o montante destinado ao fomento da cultura ¾ foram investidos apenas na construção do Museu do Amanhã e do MAR (Museu de Arte do Rio) – que distam menos de 500m um do outro –, em detrimento das demais potencialidades existentes na região, sobretudo os centros de cultura negra como o Instituto dos Pretos Novos (IPN) que se mantém em funcionamento através de doações e repasses de uma universidade privada. Na minha opinião o Museu do Amanhã está, no mínimo, descontextualizado do seu entorno.
O seria uma leitura "decolonial" da questão e como ela se aplica ao porto do Rio?
Eu acredito que o que foi proposto pelo governo municipal: a tentativa de reconversão da zona portuária em um atrativo para investimentos do capital privado que nega sua memória e expulsa seus habitantes, seja totalmente o oposto da visão decolonial da questão. A região representada pelos bairros da Saúde, Gamboa e Santo Cristo, apelidada de Pequena África, deveria ser tratada como reduto cultural da herança africana e beneficiar principalmente sua população descendente, a começar pela garantia do direito à cidade.
Qual a importância de se poder ver sítios de memórias traumáticas em seu local - e não apenas em filmes ou outros registros visuais que os retratem?
A presença desses lugares de memória, principalmente os lugares de memória sensível, é controversa. O Sítio Arqueológico Cais do Valongo torna-se um indício, um documento para que esse crime contra a humanidade acontecido no passado nunca seja esquecido, mas também evoca essa memória de dor da escravidão que pode causar desconforto, principalmente para seus descendentes. No entanto, coincido com a historiadora Martha Abreu em que “não podemos correr o risco de só narrar a história do sofrimento, da vergonha e da derrota”, pois apesar da forte repressão, as culturas africanas se manifestavam nas casas de Candomblé, no Largo da Prainha com as Casas de Zungu, na Pedra do Sal – que serviu de local sagrado e de acolhimento para a população negra, além de reduto do samba urbano carioca –, nas rodas de capoeira, e nos mais diversos batuques e danças de origem africana, manifestações muitas das quais persistem até os dias de hoje.
A respeito da arqueologia do sítio, você comenta na dissertação que, fruto dos vários aterros que o Rio recebeu, o cais do Valongo hoje é um "cais sem mar". Nesse sentido, o que se pode esperar para o futuro do Cais do Valongo enquanto espaço de memória nesse porto "revitalizado"?
Quando eu digo que ele é um cais sem mar, me refiro ao fato de que o entorno foi modificado intensamente ao longo de mais de um século que esteve enterrado. Desse modo, é necessária a educação do olhar para a compreensão do que se vê, o que eu classifico na minha dissertação como musealização dos achados arqueológicos. O futuro do sítio arqueológico é incerto por descaso das autoridades competentes. Em 2017 ele foi considerado Patrimônio Mundial pela UNESCO com algumas condições a serem cumpridas, dentre elas a construção do Centro de Interpretação do Sítio Arqueológico Cais do Valongo a ser alocado no Galpão D. Pedro II, próximos às ruínas. O prazo terminava no fim de 2019 e até hoje nada foi feito, o galpão é símbolo de disputa e irá para as mãos da Fundação Palmares, hoje comandada por Sérgio Camargo, uma figura polêmica que representa um desserviço para a comunidade negra. Recentemente em julho de 2020 o sistema de drenagem do cais falhou e ele ficou todo alagado. São absurdos como esses que não poderiam acontecer com um patrimônio tão simbólico para a memória da cidade do Rio de Janeiro.
E por fim, onde podemos encontrar sua Dissertação de Mestrado?
Em breve na Base Minerva da UFRJ (minerva.ufrj.br) pelo título: “Memórias subterrâneas em disputa: arqueologia urbana portuária nas cidades do Rio de Janeiro e de Buenos Aires”
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Uma ótima viagem a todos! :)
Até a próxima,
Luísa