Há quem diga que nossa mentalidade é resultado das cinco pessoas com quem mais convivemos. Sempre achei difícil de concordar com isso, tanto porque já convivi com muitas pessoas e muito diferentes desde que nasci, quando porque não sei dizer as cinco pessoas com quem mais convivo hoje. Família conta? Amigues, funciona tanto pro presencial quando pro whatsapp?
Gosto mais da ideia de que nosso universo se expande conforme o mundo que conhecemos e as pessoas estão inseridas nisso. Uma amiga vai trabalhar em um posto de saúde na favela, e isso é a ponte para um mundo completamente alheio ao meu. Outra amiga decide ser modelo, e mais uma vez, expansão. Pra elas e todes que tem a sorte de conviver com elas. Uma vida só é pouco pra todas as possibilidade que se abrem e se perdem pelo caminho, só pra uma pessoa, acho eu.
Tudo isso pra dizer que essa e a próxima edição serão com a entrevista que fiz com uma amiga que foi morar do outro lado do mundo, no Qatar, com o marido dela, que foi trabalhar nos preparativos da Copa do Mundo de 2022.
Entrevista com Adriana Luz, maio de 2022:
1. Para começar: Adriana, o que te levou ao Qatar?!
Eu e meu marido Lucas já conversávamos sobre possibilidades de viver experiências profissionais fora do Brasil há um tempo e, por isso, já avaliávamos as condicionantes. Para nós era muito importante que as determinantes fossem favoráveis, como um trabalho que acrescentasse a nível profissional, pessoal e financeiro, considerando que eu teria que abdicar de um trabalho estável como arquiteta no Rio de Janeiro. Eu trabalhava há 6 anos no Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, na defesa do Patrimônio Histórico e Cultural Brasileiro, e o Lucas trabalha no segmento dos grandes eventos esportivos. Foi então que ele recebeu uma proposta de trabalho para a Copa do Mundo de 2022 no Qatar, as condições pesaram favoravelmente e nós decidimos vir.
2. Você é uma pessoa que já viajou bastante. Você já tinha alguma ideia prévia de como era o Qatar antes de ir? Já tinha visitado algum país próximo?
Já visitei alguns países próximos como Turquia, Jordânia e Israel. Fui também a Tunísia, ao Marrocos e a Tanzânia, que apesar de serem geograficamente mais distantes, também são países com grande população muçulmana, por isso eu já tinha uma ideia de como são países que têm o Islamismo como uma de suas religiões. Mas meu conhecimento sobre o Qatar especificamente era limitado, se restringia às leituras que eu fazia na internet. De forma geral, eu sabia que era um país no Oriente Médio, com religião oficial islâmica, com o território e a população pequenos e com a base econômica na exploração do petróleo e do gás natural.
3. Sendo uma arquiteta que trabalha com patrimônio, como você vê o ambiente urbano de Doha? Qual a relação do país com patrimônio construído?
A sensação de viver no Qatar é de estar dentro de uma maquete de arquitetura.
Os bairros possuem identidades arquitetônicas muito diferentes uns dos outros e são territorialmente e arquitetonicamente bem definidos. Por exemplo, o bairro “The Pearl” é uma ilha artificial conectada ao continente por uma ponte, os edifícios têm referências estéticas europeias misturadas com características árabes. O “West Bay” é o bairro onde estão os arranha céus à beira mar que se tornaram cartão postal de Doha, prédios enormes envelopados com vidros, me lembra muito a paisagem de Dubai, porém em uma escala menor. O “Education City” é uma cidade inteira voltada para instituições educacionais, onde é possível encontrar edificações com conceitos arquitetônicos mais elaborados. A sede do “Qatar Foudation” e a biblioteca nacional, por exemplo, foram projetadas pelo OMA (Office for Metropolitan Architecture).
O “Souq Waqif” e o “Souq Al Wakra” são áreas que passaram por processo de restauração, em que a arquitetura nova se mistura com a restaurada. Os souqs antigamente eram áreas onde se localizavam o mercado de gado e as feiras de artesanato, de forma geral eram onde os beduínos se encontravam para fazer o comércio. Entre 2006 e 2008, o “Souq Waqif”, que fica na Doha antiga, passou por processo de restauração, então hoje é um mercado que possui aparência de antigo. O intrigante é que não é claro o que é novo e o que é antigo em termos de materiais arquitetônicos, dando uma clara sensação de falso histórico. Mas ainda assim, para mim, o “Souq Waqif” é o lugar que concentra a dinâmica viva da história do Qatar, quero dizer, é onde é possível encontrar artesanato tradicional do Oriente Médio, ouro, pérola, perfumes, incenso árabe, shisha, comida tradicional, doces árabes, tâmaras, eventos culturais etc.
Já em “Msheireb Downtown”, que também está na antiga Doha, é uma área renovada com arquitetura contemporânea de última geração onde existe um complexo de museus que foram construídos para celebrar a história de quatros casas do patrimônio histórico qatari. Vale mencionar também o “Katara Cultural Village”, que é um centro cultural que promove e protege a cultura qatari, o lugar é enorme e engloba parque, mesquita, praia, restaurantes, teatro, anfiteatro, planetário, galerias, shopping, com espaços gerais para promoção de eventos festivos ao longo do ano.
Portanto, considerando que vivo no Qatar há apenas 8 meses, atualmente minha visão do país é de um lugar com uma expansão extremamente rica, rápida e muito diversa, o que me traz um sentimento controverso e confuso ao tentar entender a identidade do país e qual a imagem que eles querem transmitir. Por um lado, é prazeroso ver o estado promovendo e financiando as dinâmicas históricas e culturais da cidade, por meio de celebração de datas festivas e tradicionais, eventos culturais ou até pela manutenção dos mercados e museus. Mas por outro lado, o sentimento que tenho é de ser parte do público de um grande espetáculo onde as atividades culturais, mesmo que simples, são muito organizadas, ricas e ocorrem em espaços arquitetônicos extremamente sofisticados.
Eu posso dar um exemplo prático: pelas minhas experiências, tenho na memória que os mercados árabes são geralmente conhecidos pela grande confusão entre os vendedores e clientes durante as barganhas por preços e tudo ocorre em ruas apertadas e movimentadas, certo? Aqui isso é diferente, os mercados são estruturados, com locais específicos destinados para celebrações, com ruas espaçosas, a negociação é tímida e tudo organizado. Por isso me questiono se as atividades culturais locais que têm como objetivo transmitir as raízes históricas acontecem de forma natural ou não. A resposta para esses questionamentos eu espero que venha com o tempo e com mais conhecimento do local.
~A continuação dessa entrevista vocês vão ler na próxima edição!
Uma ótima viagem a todos! :)
:Dicas a bordo:
~ Esse instagram que a própria Adriana me indicou, de uma mulher brasileira-muçulmana, a Mariam Chami.
Até a próxima!
Luísa
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Legal demais ter uma visão do Qatar de fora dos grandes jornais! Lu, aconselho muito um vídeo que está no YouTube da Arte FR (tem que usar VPN - cana de tv Arte 1 no Brasil) sobre a história política do Qatar e todo o relacionamento com o ocidente.