Em 2021 um casal de amigos arquitetes foram morar no longínquo Qatar por causa da Copa do Mundo que vai acontecer ainda esse ano. A primeira parte dessa entrevista você leu na última edição dessa newsletter e hoje ela continua aqui. Boa leitura!
Entrevista com Adriana Luz, arquiteta e urbanista, parte 2:
4. Antes de fazer a mudança, houve um período de preparação? Quais foram suas principais preocupações nessa época, coisas que você esperava ver/viver, e quais delas se confirmaram?
Minha principal preparação foi entrar em contato com pessoas que moravam ou já haviam morado no país para entender a dinâmica de vida. Fiz perguntas sobre o custo-benefício de se viver em determinados bairros, as vestimentas adequadas, o clima, as possibilidades de lazer, a comunidade brasileira, as comidas locais, os produtos disponíveis no supermercado.
A grande mistura de nacionalidades foi muito esperada e totalmente confirmada. Aqui convivo com pessoas do mundo todo, a maioria da população é de expatriados, apesar da língua oficial do país ser árabe, nos comunicamos somente em inglês. Em um mesmo dia você pode conversar com pessoas de todos os continentes do mundo e essa troca é extremamente rica.
5. Como é a relação da cidade com religião? Há lugares sagrados ou proibidos, horários mais ou menos adequados para ir a certos lugares ou para se estar na rua?
Doha possui mesquitas para todos os lados e, em determinados horários do dia (5 vezes), é possível escutar o chamado para oração, soa como um cântico árabe para mim que não entendo o idioma. Nos lugares que não têm mesquitas sempre têm salas de oração, no metrô, nos shoppings, nos prédios comerciais, hotéis, souqs (mercado árabe), restaurantes, e as salas de oração são separadas para homens e mulheres. As sextas-feiras são sagradas para os muçulmanos e, por isso, o horário comercial é diferente. O metrô, por exemplo, só funciona depois das 14 horas. Os dias úteis da semana são de domingo a quinta-feira.
Os homens qataris muçulmanos usam thobe (espécie de camisa branca comprida), na cabeça usam a ghutra, que é o lenço, o igal, corda que prende o lenço à cabeça, e embaixo do lenço usam a gahfiya, um tipo de touca. As mulheres qataris muçulmanas vestem abayas, que são como vestidos pretos compridos, e cobrem a cabeça (cabelo, orelha e pescoço) com a shayla (hijab) que é um véu, algumas delas usam os véus faciais também, que pode ser o niqab (os olhos permanecem aparentes) ou a burca (olhos cobertos).
Durante o Ramadan, mês sagrado do calendário islâmico, a dinâmica da cidade muda, uma vez que os muçulmanos fazem jejum do nascer do sol ao pôr do sol, os restaurantes e cafés só abrem no final do dia. Os não muçulmanos devem respeitar a tradição e religião local e não beber e comer em público. O iftar é o jantar de quebra de jejum que os muçulmanos fazem de forma comunitária, a comida é a tradicional local e geralmente a tâmara é o primeiro alimento que se consome nessa refeição.
A maior mesquita do Qatar é a Imam Abdul Wahhab (foto abaixo), a entrada é aberta a visitantes independente da religião, mas durante horários sem oração.
Não existem regras de circulação na cidade e me sinto muito segura no meu dia a dia. Existem regras de vestimentas e comportamento a serem cumpridas. Trocas de carinho em público não são bem-vistas e tampouco tirar fotos de mulheres muçulmanas sem o consentimento delas. Com relação à vestimenta, nós mulheres não muçulmanas devemos cobrir ombros, cotovelos e joelhos, evitar decotes, roupas justas e transparentes. Já os homens devem cobrir ombros e joelhos e não usar regatas ou bermudas curtas. Mas esse código de vestimenta muda de acordo com os lugares que você frequenta. Em alguns bairros ou condomínios com maioria de residentes expatriados as pessoas se vestem como em seus próprios países. Cabe sempre o bom senso, certamente existem pessoas que não seguem as regras, mas essas estão sujeitas a serem repreendidas.
6. Como é a relação da vida urbana com o clima? Faz muito calor o ano todo? Como é a relação das pessoas com o espaço público, ruas, mas também praças e parques, considerando a temperatura? Que soluções arquitetônicas e urbanísticas para lidar com temperaturas extremas você viu aí?!
O Qatar é desértico, o inverno é agradável, o clima é fresco, seco e os ventos são muito fortes, do tipo que assobia alto, e é bem comum ter tempestade de areia. De novembro até março aproximadamente, as pessoas aproveitam os espaços públicos ao máximo, é possível ver muitos piqueniques, crianças aproveitando para brincar e ciclistas ocupam as ruas. Já o verão é abafado e escaldante, a temperatura é insalubre, podendo chegar a 50 graus, por isso não se veem pessoas andando na rua.
A solução encontrada para tantos meses quentes são os shoppings que têm ar-condicionado. Em um país rico como o Qatar, eles se utilizam da combinação dinheiro + criatividade para investir em muitas alternativas dentro dos shoppings, aqui tem até um parque com dunas de neve dentro do shopping (“Festival Mall”), e canais de água onde você pode fazer um passeio de gôndola, como os de Veneza, a diferença é que isso acontece dentro de um local fechado (“Villagio Mall”). Os parques têm carrinhos de Golf para as pessoas circularem e em alguns locais abertos tem ar-condicionado que sai do chão (“Katara Cultural Village”). Nos bairros mais novos, por exemplo “Msheireb Downtown”, as alternativas para sombras são mais comuns, como lona tensionada, coberturas retráteis, pergolado, calçadas cobertas. Os prédios são pensados para você chegar no estacionamento de carro, entrar no elevador e já sair direto no pavimento destino, todo o trajeto obviamente terá ar-condicionado. Em toda a cidade observam-se prédios inteiros que são como caixas feitas para abrigar os condensadores de ar, existem muitos prédios destinados somente a estacionamentos também. Conclusão: na grande maioria dos bairros onde eu circulei até hoje, o meio urbano não é pensado para pedestre, as calçadas são constantemente interrompidas por canteiros ou por obras, muitas vezes as calçadas não existem.
7. E pra fechar, como tem sido a vida cotidiana? Está gostando do dia-a-dia?
Eu gosto muito de descobrir e experenciar novas culturas, conversar com pessoas de nacionalidades distintas, entender costumes, perguntar a razão da vinda ao Qatar, fazer caminhadas longas para observar o espaço construído e a natureza, experimentar comidas diferentes, questionar modos de vida, quem não gosta? Os dias aqui têm passado rápido e a cada momento encontro uma novidade. O Qatar tem uma multiculturalidade incrível e certamente é o que mais me fascina no país.
Uma ótima viagem a todos! :)
Até a próxima!
Luísa
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