Casa-corpo-tempo
Eu mesma com 22 anos na entrada na Feria de Sevilla
No dia 09 de setembro de 2010 eu cheguei em Sevilla, cidade do sul da Espanha, para começar meu intercâmbio, no final da faculdade. Foi minha primeira viagem à Europa e primeira mudança de casa, um processo que se repetiu tantas vezes depois. Naquela época eu costumava pensar que um dia esse dia estaria há dez anos de distância de mim. E não é que chegou? Recentemente escrevi sobre o tema "casa-corpo", sobre essas mudanças e perambulações por aí. Escolhi compartilhar hoje em comemoração ao tempo que passa, mas também à tudo que fica.
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Era julho de 2008 quando embarquei em uma viagem muito inusitada: alguém na faculdade descobriu que a UFF pagava ônibus para os estudantes que quisessem ir a um Encontro de Arquitetura fora do Rio. Naquele ano, era em Belém do Pará. Ganhamos um ônibus incrível, de dois andares, poltrona reclinável e cobertores. Eu dizia que iria até o México nele. Meu amigos, mais experientes nos mochilões da vida do que eu, levaram seus pertences em formatos adequados: mochilas pequenas, cheias de tiras ajustáveis, acessórios pertinentes às frágeis condições de hospedagem que nos aguardavam. Eu não. Eu fiz minha mala como sempre fazia, levando várias opções de roupas, levianamente achando que tudo que eu quisesse podia estar ao meu alcance. Meus pais foram me levar ao ônibus com aquele desespero e confiança no peito, e quando cheguei no local de encontro, cai na risada ao ver que o quanto minha mala gigante destoava da vibe aventureira no ar.
Uma mala mais ou menos daquele tamanho foi a que me acompanhou alguns anos depois, quando me mudei pra Espanha. Enquanto a arrumava, olhava insegura para os meus pertences, temendo esquecer alguma coisa que poderia me lembrar quem eu era. Levei roupas, livros, objetos.
Cheguei em Sevilha no fim do verão e no primeiro vento frio eu comprei uma blusa mais grossa e pensei “to feita”. Mais um mês, o frio apertou, comprei mais um casaco e pensei “agora sim, tô feita”. Isso se repetiu algumas vezes inverno adentro. Eu nunca acertava.
Na primeira viagem ao “exterior” (Londres), um desafio: encarar as famosas empresas de avião de baixo custo que só aceitavam malas de até dez quilos para caber no preço e avião. Lá ia eu de novo enfrentar uma semana carregando apenas meio metro quadrado de mim. O maior problema eram os sapatos, que foram resolvidos com a bota galocha mais barata que eu encontrei: 12 euros de plástico preto vedado até o joelho.
“Pronto, to feita!”. Nem UM único chinelo eu levei. Percebi que meus casacos eram tão inúteis praquele frio que passei a andar dando pulinhos para ver se me esquentava. Aprendi (ou será que já sabia)? a dormir onde fosse, dividindo a cama com quem fosse, com a coberta que desse, meus sonhos enormes dando conta de sustentar até o mais fino dos travesseiros.
Quando entrou a primavera me mudei de casa na própria Sevilla e reocupei mais um quarto novo, novas pessoas, novos idiomas e universos. Voltei pro Brasil e me mudei de novo. Largo do Machado, Niterói, cada casa uma re-forma de mala, de espaço, de dentro e de fora. Avisei a mim mesma que por mais que eu espremesse coisas no mochilão que virou meu melhor amigo, eu não dava conta de carregar 10 quilos. Eu não dava conta. Dormi no aeroporto, dormi em albergue, em casas inesperadas, briguei com pessoas, amei outras tantas,
nunca
tive
medo.
Dividi meu espaço com quase 15 pessoas ao longo do período que até hoje chamo de vida, apesar de ter enfrentado algumas mortes pelo caminho.
Fui expulsa de casa e não briguei — aprendi que o espaço de cada um é pessoal e intransferível — e que se aquele não competia mais a mim, ok.
Guardei a arquiteta que existia em mim no canto esquerdo inferior do meu peito, para conviver melhor com salas sem móveis, gatos e cachorros que não falavam a minha linguá, paredes de cores berrantes e tantos espaços que não eram meus. Delimitei nesse processo as fronteiras da única coisa que eu possuía:
a
mim
mesma.
No período de transição em que morei com uma amiga, não tive coragem nem de forrar o lençol, tamanha a falta de capacidade de interpretar que eu não tinha lugar pra ficar. Eu não tinha lugar. E dormi um mês no plástico que embalava o colchão. Em outros dias viajei, mudei, chorei, em uma semana dormi em cinco lugares diferentes, tentando fazer com que o deslocamento sacolejasse a tormenta que morava dentro da minha cabeça, que sacudia e expulsava várias partes de mim.
A conclusão dessa história é: nos últimos dez anos eu não morei mais de dois anos no mesmo lugar, e o aprendizado que eu tirei foi o de morar e habitar na verdade em um só lugar: dentro desse corpo que é composto por duas pernas e dois braços finos. Dez dedos compridos nas mãos, muitos outros no coração, e uma cabeça que quer estar em todos os lugares mesmo estando só em um.
Uma vez, logo antes de mudar pra São Paulo, meu terapeuta me disse:
“Parece que você está com a casa organizada”
Eu respondi: “Que casa?”
E ele: ‘Você.
A única casa que existe é você. Todo o resto é transitório’.
Uma ótima viagem a todos! :)
Até a próxima!
Luísa