Como é a cidade que você vê?
"Parasita", premiado no Oscar como melhor filme de 2019.
"It's easy to ignore inequalities when you can't really see them" é uma fala do fotógrafo Johnny Miller sobre a o trabalho que fez com drone entre fronteiras da desigualdade, mas poderia ser um outro nome do filme Parasita. Nos últimos dias, com o Oscar, ele voltou a ser protagonista no debate público. "É fácil ignorar desigualdades quando você de fato não consegue vê-las": Parasita também poderia se chamar "A vida invisível", nome de outro filmaço de 2019 que expõe o que está na cara, mas que não se vê. Por um lado, o tema da fronteira do dinheiro na cidade já foi registrado de diversas formas (eu também já falei um pouquinho dele aqui), mas o filme ressalta as estruturas invisíveis que sustentam a vida "oficial" nas cidades, onde as fronteiras são diluídas e se interpenetram.
Chamo de vida "oficial" porque é a que aparece na maioria das coisas que a gente assiste, então fica nas nossas cabeças, no imaginário coletivo. Por muitos anos, novela da globo só mostrava personagens bem ricos, com casas que a maioria da população nunca nem entrou. Mobilidade urbana era carro com motorista e a periferia aparecia nos empregados uniformizados e olhe lá. Os condomínios murados, as blindagens da vida pública, são barreiras fictícias que fingem não existir o encontro entre dois mundos que Parasita expõe tão bem. O que está escondido nos porões das casas grandes contemporâneas? Você sabe quão fundo vai sua cidade, ao descer as ladeiras? Você sabe onde chove? A chuva é mais clara, arrebenta os limites dos rios canalizados e deixa no chinelo as maiores metrópoles do Brasil, todo verão. Quem é o parasita, quando já se sabe que o colapso climático vai afetar primeiro os mais pobres?
Tornar "invisível" o limite das diferenças espaciais na cidade permite criar inimigos ficcionais e todo um aparato de barreiras físicas, grades, guetos, portarias com gaiolas, conjuntos habitacionais, pra só permitir seu acesso pela porta dos fundos. Parasita é sobre isso: um contato permitido às custas da fantasia, da maquiagem e esconderijo na origem dos personagens e seus laços, frente à uma total, completa e abismal alienação da família rica sobre a cidade em que vivem, e as condições de vida, trabalho, habitação e deslocamento da população trabalhadora. Em um texto sobre como áreas periféricas são apresentadas na televisão, o historiador Ioanis Deroide mostra como é desacredita a vida fora do centro das metrópoles, e menciona até a novela Avenida Brasil, destacando como enfim o Rio de Janeiro aparece fora do contorno dos seus monumentos principais. Existe Rio sem vista do Cristo, mas a gente precisa vê-lo também nas telas. Um pouco na linha de "Que horas ela volta", Parasita expõe esses temas de forma tão crua e surpreendente, que abriu um debate bem grande. Nas dicas de hoje, selecionei alguns textos e outras mídias que discutem as mil camadas do filme, boa leitura!
Uma ótima viagem a todos! :)
:Dicas a bordo :
Especial ~ críticas sobre Parasita:
~ Como o conflito se revela através das casas (Guilherme Wisnik para Folha de São Paulo)
~ Um filme onde tudo que importa é contado através do espaço (Revista Domus)
~ A análise de Christian Dunker sobre Parasita (Youtube)
~ Revolushow com análise do contexto histórico, político e as muitas camadas do filme (podcast)
~~ Também nesse tema, outro filme que concorreu ao Oscar de melhor filme internacional: Les Misérables, filme francês que pegou emprestado o título do livro sobre o século XIX para falar da periferia parisiense hoje.
Até a próxima,
Luísa
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