Desconhecido íntimo: relatos sobre a carona niterói-fundão
A Faculdade de Direito da UFRJ tem o apelido carinhoso de FND. Era a Faculdade Nacional de Direito em 1891, quando o Rio de Janeiro terminava o século XIX consolidando suas feições de cidade-gente-grande, com passeios públicos, praças de desenho francês e centro bem vivo. No mapa da fotinho acima, dá pra ver que bem do lado da FND fica o campo de Santana. Os edifícios universitários ficavam no meio da cidade, onde qualquer um poderia acessar facilmente e onde vida urbana e vida intelectual formavam um cotidiano entrelaçado.
A UFRJ é a maior faculdade federal do Brasil. Desde 1952, o seu campus principal fica situado numa ilha, tão longe da cidade que é chamada de “Ilha do fundão”. Fica no fundo. Da baía, das estradas, do centro, no fundão. Como é impossível morar perto da faculdade, chegar e sair virou um desafio metropolitano. Dentro da Ilha existe uma residência universitária, mas ela tem 540 quartos e a UFRJ tem quase 70 mil alunos.
A partir de Niterói, cidade do outro lado da Baía de Guanabara, sai um ônibus que vai “direto” pro fundão. O ônibus se chama “Galeão”, que é o nome do aeroporto internacional (a universidade é tão longe da “cidade” que fica do lado do aeroporto internacional). O ônibus Galeão é da 1001 e não percorre a cidade toda de Niterói, apesar de ser a única forma de se chegar à UFRJ de forma “direta”, mesmo que leve duas horas no horário do rush, e a outra opção seria pegar ônibus-barca-ônibus. Por quê alguém marca compromissos, aulas, reuniões ou qualquer coisa às 8 horas num lugar onde é impossível morar perto, eu não sei.
Então surgiu uma nova forma de se chegar no fundão, saindo de Niterói: a chamada "carona paga". Funciona assim: através de alguns aplicativos ou de um grupo no facebook, pessoas que vão de carro oferecem as vagas livres no seu veículo, avisam o ponto de saída e cobram 7 reais, preço similar ao do ônibus. Nesse arranjo tudo é muito sistemático: “saio às 6:15h do posto X, vou pro CT (centro tecnológico da ufrj)”. “Oi fulano, tem vaga na ida?”. São duas opções: esperar o ônibus que leva duas horas até o fundão, ou andar até o ponto da carona. A partir daí são cinco desconhecidos na gratidão de quem achou uma solução pra não ter que ir em pé no ônibus lotado às 6 da manhã que vai pra uma ilha onde se é impossível morar. “São todos da engenharia, os que tem carros?” “acho que sim, mas ninguém conversa”, foi o que me informaram algumas pessoas que se habituaram a usar o sistema.
No nosso mundo, o carro é um símbolo da liberdade individual. Faz parte de todo sonho americano de cruzar o país em rotas retilíneas rumo à Califórnia (viver a vida sobre as ondas). Já a carona era aquilo que um amigo oferecia pro outro que estaria indo pro mesmo lugar. E ai de quem pegou a carona de não ser simpático, puxar um assunto, prestativo e co-piloto. Também tinha a carona na estrada, quando você era jovem sem dinheiro e queria descobrir o mundo.
Mas na carona Niterói-fundão, o carro é transformado em espaço público. Vira ônibus com cara de carro e convívio de ônibus. Desconhecidos íntimos, bom dia, silêncio, cordialidade, sete reais, serviço prestado. A atmosfera, no entanto, é meio bizarra; as pessoas estão comprimidas em um espaço pequeno e privado de um carro, mas se comportam como se estivessem dentro de um ônibus (que, convenhamos, é mais espaçoso que um carro, mesmo quando está lotado). É um espaço compartilhado por, no máximo, cinco pessoas, mas é como se estivesse compartilhando um espaço coletivo com quarenta. Na falência do transporte público metropolitano, um acordo silencioso e coletivo de prestação de serviços entre cidadãos desconhecidos. As regras são outras, a rotina é outra, as necessidades são urgentes.
A Faculdade Nacional de Direito, de 1891, continua lá do lado do Campo de Santana, que não é mais o antigo centro vivo da cidade, mas pelo menos não é uma ilha.
Uma ótima viagem a todos! :)
: Dicas a bordo :
~ São Paulo em uma biografia gráfica
~ As transformações da cidade que baniu outdoors
~ O poscast Ponto G conta a história de Lota de Macedo Soares, arquiteta autodidata que projetou o Aterro do Flamengo. Ela também teve um longo relacionamento com uma das maiores poetas da língua inglesa, Elisabeth Bishop, que é contado no filme brasileiro Flores Raras, com a Glória Pires.
~ Formas de ser um arquiteto melhor sem estudar arquitetura: essa delícia de episódio do Arquicast
~ Nada melhor pra escapar da realidade do que esses desenhos
Até a próxima!
Luísa