Recentemente, o jornalista Chico Felitti lançou um podcast investigativo para acompanhar a denúncia de um grupo de jovens contra um de atelier de arte em São Paulo em que o “mestre” pratica uma série de violências. Os relatos são chocantes, geram revolta, e me lembrou que esse tema também foi retratado no filme “Whiplash”, de 2014. Eu saí da sala do cinema bem incomodada com essa noção tantas vezes banalizada de que a violência e o sacrifício são formas de ensino.
Certo, os limites são tênues. Ou será que não são? O primeiro limite é o corpo e o é em relação ao outro. Dedicação, concentração, abnegação e abdicação são condições inerentes ao desenvolvimento de atividades em que se pretende algum grau de evolução, mas levar um tapa na cara ou uma cuspida de um professor, não são. A gente ouve e se pergunta porque pessoas adultas, ainda que jovens, toleram passar por isso, mas os motivos pelos quais as pessoas se submetem à violências e abusos são de cunho psicológico e sociocultural - e não são o foco do que gostaria de abordar aqui.
Pra mim, o problema é quando a violência se torna sinônimo de sacrifício (sacro-ofício, um ofício sagrado), ou da ideia de que o sofrimento edifica, constrói algo. A ideia de honra na violência permeia ritos de passagem e de vitória, comuns, por exemplo, no campo dos esportes, mas que transbordam em lugares que deveriam ser de comemorações ou de suar de forma saudável (tem um jeito bom de falar isso?). Essa semana terminou o excelente Pico dos Marins, outro podcast, que conta a história do desaparecimento de um garoto escoteiro e, como um hipótese de um possível acidente envolvendo o caso, a reportagem levanta a possibilidade de ter ocorrido um trote. Trote, prenda, peça, brincadeira, agressão. O escotismo repreende qualquer tipo de trote em seu código de conduta - e a gente logo pensa que se há uma norma, há uma prática. Como nos trotes universitários, a comemoração de uma conquista rapidamente se confunde com humilhação em público, abusos físicos e morais, violência. Há poucos anos, denúncias de assédio, abusos e violências em trotes de calouros de faculdades vieram a público, e quando maior a “valorização” do curso, mais forte o trote - medicina e direito são faculdades historicamente ligadas à “brincadeiras” que desvirtuam o que deveria ser um momento de leveza depois de tantos anos de dedicação e tiveram consequências nefastas.
Um segundo limite também é do corpo e é em relação à si mesmo. Aqui as coisas começam a ficar menos claras. Quantas noites é possível ficar dormir para que isso seja considerado “não saudável”? Quantos dias sem tomar banho? Sem comer? Até onde eu sei, em formações que envolvem algum tipo de processo criativo, arte, arquitetura, publicidade, música, gastronomia, é mais comum de se ver esse tipo de limite ser cruzado a nível cotidiano (não posso dizer por outras formações, pois não conheço). O problema, a meu ver, começa quando esse tipo de comportamento/abordagem/solução é considerada não só “normal” como valorizado.
Quando eu estudava arquitetura, chegar de manhã dizendo que não tinha dormido era uma espécie de medalha de honra, uma “credencial” de que você sim era um aluno dedicado. Eu sempre achei aquilo bizarro, porque não acontecia vez ou outra, em um trabalho especificamente difícil, ou que tinha encontrado um percalço no caminho. Era uma prática rotineira.
A isso soma-se uma ambiência de competição, muito comum nessas escolas, entre professores e alunos: “esse trabalho está um lixo”, seguido de papéis amassados e rasgados pelo professor; “Você não serve pra arquiteto, devia procurar outra profissão”. Eu queria entender que espécie de aprendizado um professor acha que traz para o aluno ao dizer uma coisa assim, pois não consigo achar que humilhação e desmerecimento contribuem pra um profissional da criação - ou para qualquer outro. Criação demanda confiança e apoio, espaço para errar e aprender com o erro. Auto-estima se constrói com vínculo, com conexão. Professores deveriam ser os primeiros a incentivar a experimentação, a exposição em público de ideias novas, o compromisso, a disciplina e a persistência saudáveis nas formações que não tem respostas muito precisas para os problemas que postulam. É um caminho mais humano, e que escolho seguir na sala de aula.
Uma ótima viagem a todos! :)
:Dicas a bordo:
~ O podcast O Atelie, de Chico Felitti e a reportagem pra Folha de São Paulo.
~ Verena Smit, uma artista-poeta que eu acompanho há algum tempo e admiro muito, está com uma exposição pelas ruas do centro de São Paulo - imperdível!
~ Quando precisamos arejar as ideias sem sair de casa: “wonders of street view”.
~ Se você gostou desse texto, pode gostar dos outros da série “Diários de uma professora”:
Até a próxima!
Luísa
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nos primeiros períodos da faculdade de arquitetura eu virava noite... depois entregava o que dava e era isso. não conseguia mais. alguns professores achavam isso certo, diziam que fazia parte da profissão. deve ser por isso que tenho tantos colegas frustrados rs
Não poderia concordar mais. Essa banalização da humilhação, dos fins justificam os meios, deve fazer potenciais bons profissionais ficarem pelo caminho simplesmente porque não se sujeitam a isso nas universidades (e bem, estão certos). A mania de medir sucesso pelo quanto você não dorme é muito sintomático dessas últimas gerações. Estamos repensando muita coisa, mas nossa, ainda falta um longo caminho....