“Na última madrugada, nos encontraremos sob um pirulito de esquina marcando o cruzamento de duas ruas que não se encontram (Rio Branco com Vinícius, Barata Ribeiro com aissandu), e ali você apertará minha mão antes da nosa correria pelas avenidas desocupadas, entrando e saindo de jardins e parques imaginários, nossos corpos iluminados por uma lua minguante e fria, vigiados por umas poucas janelas acesas no topo dos prédios.
(…)
Suas histórias sobre os apartamentos e seus moradores de ficção serão sempre melhores do que as minhas, e com essa doce derrota será inaugurada nossa última noite. Sem alarde ou desejo de estar em algum lugar em especial e, ao mesmo tempo, estando em todos os lugares, nos esparramando pela cidade aberta, asfaltando o chão com nossos pés, erguendo a paisagem com os nossos olhares de criança”.Trecho do meu conto favorito, “A última madrugada”, de João Paulo Cuenca, publicado no livro de mesmo nome, pela editora Leya, em 2012.
Meu conto favorito supõe uma madrugada com a pessoa amada. Uma série de suposições, uma ideia, uma esperança, a noite como deve ser.
Como cresci morando longe e acordando muito cedo, achava que era essa a condição básica da vida adulta: dormir pouco, chegar tarde, acordar cedo. Mas no meu primeiro trabalho, eu morava bem perto. Passei a acordar no início da manhã e tive acesso não só a sensação de descanso de quem não tá acordando no meio do sono rem, mas aos meus sonhos. Foi um caminho sem volta, um mergulho profundo que dura uns dez anos e alguns analistas pra me ajudar a entender uma vastidão de cenários e pessoas.
De lá pra cá, tive a sorte de construir rotinas cujas manhãs me permitiam um sono saudável, uma noite inteira. Outro dia uma amiga me disse que na infância construímos o caminho que percorremos a vida inteira. Acho que faz sentido. O caminho, o cenário, as percepções. Em um bairro residencial distante de uma cidade média, a noite não fazia parte da cidade. Às 17horas minha mãe fechava as janelas “por causa dos mosquitos” e até hoje eu vejo qualquer sinal luminoso da Avenida Paulista e me sinto automaticamente em Nova York. O grande símbolo da cidade que não dorme. Já ouvi de mais de uma pessoa que São Paulo, infelizmente, dorme sim. Raros são os eventos que adentram a noite, serviços não se encontram, lavanderia aberta de madrugada como em seriado americano? Nunquinha. Rotinas convencionais em meio ao concreto.
Quando morei em Paris demorei pra ver a noite. Cheguei em maio, época que o sol se põe lá pras 21h e eu já estava em casa, de janelas fechadas. Na infância construímos o caminho que percorremos a vida inteira. Sonhos todas as noites. Várias vezes. Com a minha infância e com outros planetas. Com labirintos de onde não consigo sair, com cidades que nunca conheci. Com a Paris que um dia eu vi a noite, com o cruzamento de luzes entre o prédio da FIESP e a fachada do shopping Cidade São Paulo, que esses dias recebeu a arte da maravilhosa Eva Uviedo. Com a cidade que nos foi apagada pela pandemia.
Assisti Ruptura (Severance), o novo seriado da Apple TV+, no Brasil e quase desisti. Senti claustrofobia ao ver que as pessoas que decidiram separar totalmente sua vida profissional da pessoal, deixaram que seus “eus” do trabalho ficassem confinados a um escritório branco e sem janelas, sem nem saber. Mas que diferença faz, não ver o lado de fora, se nem sabemos? Que cidade importa se o objetivo do trabalho é produzir? Quase desisti, mas fui até o final e não poderia recomendar mais.
Em São Paulo, a cidade vem acordando. Teve até carnaval, de dia e de noite.
“Antes de voltar pra casa, no ponto de ônibus que nunca chegará, você vai me perguntar se eu posso ouvir, por trás do silêncio, os sonhos de todos os que dormem: “São milhões sonhando enquanto estamos acordados”. E eu vou te contar mentiras e dizer que sim. Que posso ouvir todos os sonhos do mundo. Que, na verdade, eu e você somos sonhados por outros, que agora dormem. Que a nossa última madrugada jamais acontecerá”.
Trecho do conto “A última madrugada”, de João Paulo Cuenca.
Uma ótima viagem a todos! :)
:Dicas a bordo:
~ Memory lanes: Google’s map of our lives e as viagens que podemos fazer no google por lugares antigos
~ Essa série de explodir a cabeça da Apple TV+: trabalho, distopia e realidade em Ruptura
~ “The night girl meets a day guy”: O terceiro episódio de Modern Love, da Prime Video, e a história fofa de uma mulher com uma síndrome que a faz dormir durante o dia e trabalhar durante a noite
~ “Dorme a cidade, resta um coração”: Os saltimbancos é um musical do Chico Buarque que não marcou minha infância, mas que, por razões que só meu inconsciente pode explicar, tem retornado de novo e de novo pra mim.
Até a próxima!
Luísa
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