No dia 6 de outubro desse ano, a BBC News publicou essa reportagem sobre o fato de que o governo da Espanha está pagando um valor mensal à jovens entre 18 e 35 anos para ajudar com o aluguel, com o objetivo de que eles saiam da casa dos pais. Enquanto a média de idade em que jovens saem de casa seja de 26 anos na Europa como um todo, na Espanha fica ali pelos 30 anos, resultado de um cenário complexo, mas que se poderia resumir em uma aguda crise econômica, com aluguéis muito altos e salários muitos baixos.
Sair da casa dos pais é um símbolo de independência que tem sido muito debatido. Sair de casa pra passar perrengue, vale a pena? Sair de casa pra ter independência? Sair de casa pra ir pra uma cidade maior? Sair de casa por não se aguentar conviver com os pais? Os motivos variam, mas, em muitos lares, a relação de controle entre pais e filhos faz com que a primeira ambição da vida adulta seja ter um canto pra chamar de seu.
Não foi exatamente o meu caso. Das muitas coisas boas que foram cultivadas na minha casa, de não seguir uma série de padrões classe-medianos, a melhor foi ter boas doses de respeito e liberdade. Não lembro de ter ouvido minha mãe mandar eu fazer a cama ou arrumar o meu quarto porque (a). eu arrumava pois gostava de ver o meu quarto arrumado e (b). quando eu não tinha nem tempo nem saco para fazê-lo, e nem ela, ele ficava desarrumado e isso não era um problema.
Minha mãe poderia ter escrito o texto “Pequenas virtudes”, que dá nome a um livro da escritora italiana Natalia Ginzburg:
“É um erro menor - mas é um erro - oferecer dinheiro aos filhos em troca de pequenos serviços domésticos, de pequenas tarefas. É um erro porque nós não somos empregadores dos nossos filhos; o dinheiro familiar é tanto deles quanto nosso: aqueles pequenos serviços, aquelas pequenas tarefas não deveríamos ter nenhuma recompensa, mas ser uma colaboração voluntária na vida familiar. E, em geral, creio que se deva ter muita cautela ao se prometer e aplicar prêmios e punições. Porque a vida raramente terá prêmio e punições: no mais das vezes os sacrifícios não tem nenhum prêmio, e frequentemente as más ações não são punidas, mas, ao contrário, laudamente recompensadas com sucesso e dinheiro. Por isso é melhor que nossos filhos saibam desde a infância que o bem não é recompensado, nem o mal recebe castigo, todavia é preciso amar o bem e odiar o mal - e a isso não é possível dar nenhuma explicação lógica”.
Respeito é algo raramente concedido às crianças, acredito eu, e imagino que esteja diretamente ligado à vontade de sair de casa na primeira chance. Aquela que considero uma das maiores manifestações de respeito que vivi em casa, foi o amor incondicional. Quero dizer que o amor não tinha condições, não tinha “se”. “Enquanto viver sob o meu teto” não era o parâmetro para que fizéssemos boas coisas, fazíamos porque era a coisa certa a se fazer.
Da mesma forma, nossa liberdade nunca sofreu com ameaças. “Se fizer X perde a mesada”; “se não fizer X não sai no final de semana” foram coisas que nunca ouvimos, meu irmão e eu, em casa. Alias nem tínhamos mesada porque o dinheiro era de todos e pedíamos pelas coisas que queríamos e ganhávamos porque eram razoáveis, na maioria das vezes. Só éramos proibidos de ir a algum lugar quando meus pais achavam que não oferecia segurança (o que aos meus olhos adolescentes era várias vezes exagerado, mas faz parte); castigo não fazia parte do vocabulário da nossa família, violência menos ainda. Dos meus pais, nunca ouvimos palavras de desamor, de descrença, de diminuição ou de remorso (da vida, sim). Em casa sempre encontramos incentivo, encorajamento, anteparo, apoio. Em suma, o que eu chamo de uma combinação de amor, respeito e liberdade.
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Por um lado, sempre me senti in-dependente. Por outro, sempre tive certo apreço pela dependência no sentido que hoje se chama de “rede de apoio”. No sentido oposto ao de se sentir solitário. Acho que Maid é o melhor seriado que vi esse ano e, das coisas mais tristes que ele mostra, é o total desamparo da protagonista. Onde estão suas amigas, seus amigos? Onde estão as pessoas com as quais ela pode contar, das quais ela pode depender, sem com isso contrair uma dívida, uma vez que a família não dá conta?
“Mas essa acaba sendo sempre a premissa e a conclusão: o problema é o capitalismo. Não importa com quem eu converse, tudo volta a isso, o capitalismo está nos destruindo, nos adoecendo, nos moendo. Poderia citar o Han, o J-Hope, qualquer amigue. É o único assunto que existe. Mas entre discussões sobre qual a melhor estratégia de combate ao sistema na sala daquela casa na praia, sempre voltávamos às relações. Os amigos, conhecidos, as pessoas com quem saímos, por quem um dia já nos apaixonamos”. - trecho do texto de Clara Browne
Gosto de pensar que na minha casa praticávamos uma pequena versão de “comunismo”: “o que é meu é seu”, no caso, da minha mãe, do meu pai, do meu irmão, e meu. Da porta de casa pra dentro não praticávamos o conceito de propriedade privada, não tinha sentido. No entanto tínhamos posse, que é uma coisa diferente. Por exemplo, tinham coisas que nós deveríamos ter em dobro, uma pro meu irmão e outra pra mim, porque somos gêmeos e isso significa duas pessoas diferentes, apenas com a mesma idade. Sobretudo a verdade é que vivíamos - e vivemos - em comum.
Embora eu tenha saído de casa relativamente cedo, ainda acho estranho dizer “lá na casa dos meus pais”. Ela sempre foi a “minha casa” independente da escritura porque é um lugar de onde posso entrar e sair quando quiser e encontrar comida e amor. Talvez por isso nunca tenha me ocorrido morar na mesma cidade, em outra casa. Mudei de cidade por motivos profissionais e logísticos, é verdade, mas de fato sempre senti que tinha uma base para aonde voltar, e que isso era algo positivo. Não saí de casa para ser livre pois não me sentia presa, saí de casa pra ficar perto da cidade, pois estava longe.
É importante ser independente. É importante que as mulheres aprendam a ser independentes especialmente em um país no qual se mata mulheres que não podem sair de relações porque dependem dela para viver. Mas é também importante aprender a cultivar a dependência que foge da lógica do dinheiro, a dos afetos, da família e dos amigos.
Digo cultivar a dependência porque as relações envolvem entrega, dar sem saber o que receber em troca (que é a lógica do dinheiro). E essa é difícil ensinar. É a que faz o amigo sair de casa pra ajudar o outro na mudança num domingo de sol, ou aquela que faz o jovem adulto independente visitar os pais aos finais de semana não pelo tom amargo da “obrigação”, do “olha tudo que eu fiz com você”, “não seja um filho ingrato”, mas porque se criaram pessoas que se gostam e gostam de conviver.
Dezembro está chegando. Hora de eu voltar à Niterói, à casa “dos meus pais”, diminuir o ritmo, pisar na areia e abraçar a família. Essa é provavelmente a última cartinha desse ano. Desejo um natal feliz e de reencontros familiares à você, leitora ou leitor querido.
Uma ótima viagem a todos! :)
:Dicas a bordo:
~ Sally Rooney, amizades e comunismo: eu não poderia recomendar mais esse texto da Clara Browne, que apesar de grande eu já li umas três vezes e segue ressoando por aqui
~ “Como foi crescer em uma comuna” - um depoimento que fala do poder da interdependência do coletivo
~ Single-Family Housing Upholds the Patriarchy and Hurts Moms
~ “Enquanto viver sob o meu teto”: esse episódio de um podcast de parentalidade (Tricô de Pais), tocado por três homens, que fala de afetos e propriedade nas relações parentais, e do qual eu peguei o título dessa cartinha ;)
Até a próxima!
Luísa
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Você é muito privilegiada! Eu praticamente sai correndo... não da casa dos meus pais, mas dos meus tios. E até hoje a relação com eles não é muito boa. Uma coisa muito importante q vc falou é sobre "receber ajuda sem ficar endividada". Só recentemente eu me libertei desse sentimento sufocante de dívida.
vi tanto da família que estou construindo neste trecho aqui: "Gosto de pensar que na minha casa praticávamos uma pequena versão de “comunismo”: “o que é meu é seu”, no caso, da minha mãe, do meu pai, do meu irmão, e meu. Da porta de casa pra dentro não praticávamos o conceito de propriedade privada, não tinha sentido." <3