“Passo os dias lendo e olhando pela janela à espera da noite, sua proteção, seus sonhos, suas visões, a possibilidade de uma viagem. Não falo muito. Quero poder desfrutar da insularidade, reconstruí-la em meu corpo ao mesmo tempo que admito a incomensurabilidade dos seres que povoam minha ilha interior. Penso que não se trata de: despovoar nossa alma para desfrutar do pouco de insularidade que ela ainda encerra; e sim: fazer do nosso ser esse lugar esse ecossistema onde aqueles que escolhemos - ou que nos escolheram - se tornem comensuráveis, para além dos abismos que os separam. A neve cai lá fora, sou o caçador que segura o peixe nos braços. A neve pousa sobre os galhos das árvores, sou o peixe aninhado nos braços do caçador. A neve recobre tudo, sou o peixe que volta a mergulhar e se transforma em pássaro multicolorido sob a superfície fria e escura do rio”. - Trecho do livro “Escute as feras”, da antropóloga francesa Natassja Martin.
Um medo fundamental me assombra há alguns anos, mas não sei dizer quando começou. É o medo de evanescer, desaparecer, esvair, imergir nas profundezas do mundo real e sair do campo de visão e memória dos meus. Das minhas pessoas, dos meus lugares, de minhas próprias pegadas, ainda em vida, claro.
Estou obcecada com a narração de Natassjia Martins sobre sua experiência de vida nas florestas nevadas do norte do mundo. “Penso que não se trata de despovoar nossa alma para desfrutar do pouco de insularidade que ela ainda encerra”, ela nos diz. Também penso correr atrás do que de insularidade ainda me concerne. Do ambiente anonimo e cosmopolita da cidade grande, caímos numa pandemia que apagou contornos corporais nas telas do zoom. Trabalhei mais de um ano com pessoas cujas figuras eu nunca nem via, as reuniões eram TODAS por voz. Figuras invisíveis, meus colegas de trabalhos quase imaginários.
Fiquei obcecada em me auto-documentar. Para o caso do fatídico das perdas das memórias, que eu saiba onde me encontrar. Fotos, pastas, currículos, no alcance da mão. Viagens, amizades, histórias, ideias, teses, aulas. “Quero poder desfrutar da insularidade, reconstruí-la em meu corpo ao mesmo tempo que admito a incomensurabilidade dos seres que povoam minha ilha interior”. Eu sei, dar conta de todos os contornos é um plano falido. Para você que ainda não leu essa preciosidade, Natassja quase foi engolida por um urso, que decidiu devolvê-la. Ambos atravessados pela comunhão de corpos em batalha.
“Vi o mundo demasiado alter do bicho; o mundo demasiado humano dos hospitais. Perdi meu lugar, procuro um entremeio. Um lugar onde me reconstituir. Esse recolhimento deve ajudar a alma a se reerguer. Porque será muito necessário construir essas pontes e portas entre os mundos; porque renunciar jamais fará parte do meu léxico interior”.
A partir daí ela passa a percorrer um caminho de elaboração do trauma que transfigurou sua presença física, deixou-a debilitada e em tratamento por vários meses, mas que também deixou-a absolutamente incrédula de ter sobrevivido a tal encontro. Ela percorre então um caminho de compreensão. O que sobra dela, agora que está marcada pela criatura não-humana? O que sobra de nós a cada trauma que passamos?
A ideia de desvanecer também está presente no trabalho da Elena Ferrante, “a frantumaglia é uma paisagem instável, uma massa aérea ou aquática de destroços infinitos que se revelam ao eu, brutalmente, como sua verdadeira e única interioridade. A frantumaglia é o depósito do tempo sem a ordem de uma história, de uma narrativa”.
Quando narrar é tudo o que resta, que seja possível dosar a realidade na beira da janela com tudo que ainda pode estar por vir.
Uma ótima viagem a todos! :)
:Dicas a bordo:
~ “Funk.doc”: popular e proibido” um documentário imperdível na HBO;
~ “A amiga genial e o que nos leva a narrar nossa vida”: Tati Bernardi e Fabiane Secches nessa conversa intensa sobre a quadrilogia napolitana de Ele Ferrante
~ Depois de ver muitas exposições comemorando o centenário da arte moderna em São Paulo, estou muito curiosa pra ver essa aqui que abriu no MAM (Museu de Arte Moderna) do Rio e também as outras que estão por lá.
Até a próxima!
Luísa
Gosta dessa cartinha? Compartilha!
Quer falar comigo? Só responder esse e-mail :)
Thanks for reading Trem das Onze! Subscribe for free to receive new posts and support my work.