“Ou então fazemos do dia um espantalho, do nosso mundo comum, pontas soltas e confusão” - W. H. Auden
No último mês eu ouvi uma boa quantidade de pessoas emitirem um discurso do tipo que “ter 35 anos é a melhor fase da sua vida, porque…” ~ finalmente você organizou a sua vida financeira, ou porque você organizou a sua carreira, ou agora você pode viajar ou essa é a idade certa para se ter filhos ou, ou… e eu achei isso tudo na verdade bem estranho. Primeiramente porque as pessoas tem a mania esquisita de achar que, só porque uma coisa acontece elas, deve ser um grande modelo para todos e tudo que acontece ao seu redor.
Quando eu terminei o ensino médio uma das coisas mais maneiras que eu percebi sobre a vida é que tinha acabado aquele “parâmetro geral”- geracional. Quando você tem 7 anos ou 14 anos, basicamente todo mundo que você conhece (ou pelo menos todo mundo da mesma classe social que você) tá estudando na escola, tem lá talvez uma casa pra morar, ou duas caso pais divorciados, tem lá um cursinho de inglês, ou de violão, de futebol e segue o baile. Talvez até a gente possa estender ali até uns 19, 20 anos em que todo mundo mais ou menos já entrou na faculdade. Depois disso a coisa vai meio regida por “entre o salto e a queda o voo é livre”. O que tem de gente que não vai fazer faculdade, gente que entra, e que um ano depois muda de curso, e um ano depois muda de novo. Gente que vai morar fora, que engravida sem querer, e por querer, gente que casa com 25 anos, gente que vira empresário com 26 anos, gente que sai da casa dos pais aos 22, gente que mora com os pais aos 28. Quando foi que perdemos de vista essa heterogeneidade social?
“Passei dessa fase” é uma frase que me causa um arrepio atrás do pescoço, uma coisa, eu lembro logo do super mario bros explodindo cogumelos com um clique no joystick. E penso que a vida não é um videogame onde uma coisa sucede a outra até o dia que você morre.
A coisa mais sensível que eu li recentemente foi do escritor francês Emanuel Carrère, em “Ioga”, dizendo:
“Pois aconteceu exatamente aquilo que, com a idade, eu tinha certeza de que não aconteceria mais. Minha vida, que eu imaginava ser tão harmoniosa, tão protegida, tão propícia à escrita de um ensaio simpático e perspicaz sobre a ioga, caminhava na verdade para um desastre, e esse desastre não veio de circunstâncias exteriores, câncer, tsunami (…). Não, ele veio de mim. Ele veio dessa tendência poderosa à autodestruição da qual eu presunçosamente me julgava curado e que rebentou como nunca e me baniu para sempre do meu retiro”.
O capítulo se chama “História da minha loucura” e começa questionando essa sensação ilusória de que você finalmente alcançou um estado tal que daqui pra frente é só pra frente. Por isso me incomoda essa ideia de fases de videogame que você vai ganhando da vida e juntando aquele dinheiro e aqueles sentimentos que vão fazer com que a sua vidinha banal nunca seja bagunçada ou volte para trás.
Eu tenho muito a agradecer ao meu passado por não ter tido uma rota linear, e eu ter aprendido a não ancorar minha felicidade, minha autoestima, meu respeito pelo próximo e minha esperança no futuro com base em uma certa avaliação de sucesso do agora. Mais jovem do que meus atuais 35 anos eu já tive um cenário externo de vida perfeitamente “bem sucedido” e uma paisagem interna que queria doar a minha cabeça e comprar uma nova. “Tudo passa” é uma típica frase de tatuagem talvez porque valha a pena lembrar. Não só que todas as coisas passam, as boas e as ruins, mas mais que isso, que nós não sabemos pra onde elas vão.
Recentemente a Madeleine Dore escreveu esse texto tão lindo e que caiu como uma luva nessa minha inquietação: “What if things go well"?’ Ela começa relembrando aquela fábula taoísta em que um fazendeiro perde seu cavalo e os vizinhos vem consolá-lo, dizendo “puxa que má sorte”, e ele responde: “talvez”. E daí o cavalo volta com outros cavalos mais e eles dizem “olha, até que foi ótimo!” e o fazendeiro responde “talvez”. E assim segue até você entender que o desdobramento de qualquer evento não está dado a partir daquele evento e que estar aberto para o que a vida pode te trazer é bem interessante.
No último mês eu ouvi todas essas pessoas falarem essas coisas sobre os 35 anos e pensei “que engraçado”, eu não estou no melhor momento da minha vida financeira (seja lá o que “vida financeira” queira dizer), nem profissional e nem talvez de outras coisas, e, curiosamente, eu estou me sentindo muito feliz. Outras coisas boas estão acontecendo na minha vida, ou no meu dia-a-dia, e, mesmo assim, é maior que isso. Acho importante a gente saber que é possível. Que tem menos a ver com a idade ou com uma ideia de “platô”, mas com uma atenção cotidiana à nossa paisagem interna - com quem você convive quando está sozinho, como lida com as suas ambições, frustações, sortes, revezes e o tédio do dia-a-dia. É a gente saber que a natureza das coisas do mundo é a transformação, e que a natureza da fé é fazer o que for possível e entregar para o mundo o que não está sobre o nosso controle. Me desculpe leitor pela verve autoajuda desse texto, mas eu achei que valia a pena te dizer que, caso você pense “ tá tudo uma M” ou “tá tudo ótimo”, e se você agora acha que isso é uma grandessíssima sorte, sucesso ou um fatídico destino, saiba que
talvez.
talvez.
Uma ótima viagem a todos! :)
:Dicas a bordo:
~ Como a ancestralidade nos ensina a viver melhor
~ O que é uma boa vida e porque não temos uma?
~
: uma errante navegante inspirada pelo KrenakAté a próxima!
Luísa
Obrigada pelo lembrete gentil! "talvez, talvez, talvez!"
Aff, Lu, AMEI! Tenho refletido tanto sobre o "estar presente" no dia a dia, e suas palavras tocaram me acolheram, de verdade.