História da alimentação (e da vida) no Brasil
"All art has craft and all craft has art. But craft seeks perfection, and art seeks expression. That is why there aren't two Monalisas".
Eu ouvi essa frase no maravilhoso filme "A pé ele não vai longe", no qual Joaquin Phoenix interpreta o cartunista tetraplégico John Callahan e nunca a esqueci. "Toda arte tem ofício e todo ofício tem arte. Mas o ofício busca a perfeição, e a arte busca a expressão. É por isso que não existem duas monalisas".
Essa semana eu assisti a série documental "A história da alimentação no Brasil" e fiquei pensando nesse tema. Qual é a relação entre culinária, moda e arquitetura? Além, claro, de serem parte da expressão cultural de um povo, a sua expressão está diretamente calcada em técnica e matéria. Técnica e matéria. Matéria. Nesse excelente documentário, os episódios são divididos principalmente por itens que são matéria base do preparo da nossa alimentação: mandioca, milho, coco, banana e etc. E como eles foram transformados para terem os mais diversos usos. Tem a ver com terra: o acarajé foi o bolinho que africanos-árabes conseguiram fazer sem ter grão-de-bico por perto, adaptando com feijão. Tem a ver com a matéria que a terra dá, e você entende porquê o milho e suas farinhas são tão presentes na américa latina enquanto no Brasil as receitas encontram seu correspondente na mandioca.
Tem a ver com clima e meio ambiente: uma das falas mais impressionantes é quando a chef de cozinha Letícia Massula explica as semelhanças dos ingredientes e temperos de regiões do planeta na mesma linha de longitude - ou seja, mais ou menos próximo do sol - e da exuberância da comida tropical. Ela conta das impressionantes semelhanças entre as comidas do sudeste asiático e do Brasil: os currys tailandeses, os indianos, as moquecas da Bahia e os moles mexicanos tem o mesmo perfil de sabor, cada um trabalhando a sua maneira os mesmos ingredientes: leite de coco, coentro e pimenta, por exemplo.
Estrutura, textura, forma, cor-sabor: construir a roupa que te abriga, a casa que fica em pé, o prato que te sustenta: todas técnicas que usam em sua raiz "aquilo que a natureza dá pra gente" e transforma. Vira cultura.
Tem a ver com troca: alguns entrevistado portugueses assumem o quanto a culinária do país mudou com as navegações. Tomate, Pimentão, Abóbora, nada disso é nativo da terra lusitana. Enquanto isso, em Belém, a bacalhoada portuguesa ganha tucupi e mandioca. E você também aprende que banana, coco e manga são frutos que vieram de África e Ásia.
Barro, madeira, pedra e areia (que é matéria do vidro), itens básicos da arquitetura da Europa. Madeira, bambu, fibras, cipós e outros materiais também serviam às estruturas de casas, embarcações e utensílios indígenas. E então você vê construções Europeias dando forma às cidades coloniais no litoral do Brasil, ouro e outras pedras extraídas das minas gerais do Brasil dando luxo à igrejas europeias e, por que não, igrejas de estilo barroco brasileiro também presentes no Benin, construída por africanos que foram escravizados no Brasil, conheceram técnicas construtivas portuguesas e levaram para a Costa dos Escravos (região onde hoje se situam os países Benin, Togo e Nigéria). E nunca é tarde pra conhecer a nossa história, descolonizar o paladar e olhar e valorizar as técnicas e a expressões que fazem a mistura da nossa cultura.
Uma ótima viagem a todos! :)
:Dicas a bordo:
~ Essa cartinha em que eu também falei sobre comida e cultura
~ Sobre se relacionar com a natureza, o imperdível Professor Polvo
~ Como o ocidente está vendo surgir "cidades-zoom" (Zoom Towns) onde as pessoas moram mas realizam seu trabalho de forma remota
~ "Saberes tradicionais guarani e o último rio vivo de São Paulo" - uma matéria do jornal Nexo
~ "Como as cosmovisões de indígenas e afrodescendentes podem ajudar a construir uma filosofia brasileira" - essa matéria linda na Uol.
Até a próxima,
Luísa