“Ao contrário, o que me interessa é o ressurgimento da instabilidade como ponto de partida para o retorno de uma criatividade existencial”* (trecho do livro “À leste dos sonhos, de Natassja Martin)
Bem do meio do mundo metropolitano e concretado em que eu habito brotou uma folha de pacová que sobreviveu a tudo e me levou de vez a reencontrar a natureza.
Eu comecei a ler “A leste dos sonhos”, livro da antropóloga francesa Natassja Martin - aquela que foi mordida por um urso e conta como sobreviveu no outro livro, dela “Escute as feras”. “À leste dos sonhos” tem um subtítulo escondido na segunda página: “respostas even às crises sistêmicas” - ela vai explicando a tese de que esses povos que vivem à margem, não só do sistema econômico capitalista, mas também dos modelos estatais principais que conhecemos, oferecem alternativas para as crises que vivemos hoje.
E eu, que nem gosto tanto de política internacional, nem conheço tanto de povos originários e nem entendo muito de outras cosmologias, estou fascinada. Estragando o livro de tanto marcar e dobrar páginas a partir do sopro de vida que a Martin oferece.
Quando a gente se sente sufocado pela promessa do apocalípse, cabe lembrar daquela gravação da Ursula Leguin dizendo que a monarquia também foi um sistema que se considerava eterno (mas gente !). Então, do alto da metrópole, eu decidi que esse ano vou abrir uma fenda nas minhas leituras pra conhecer outros mundos. Enveredar por outras relações com a natureza - em todos os sentidos: com a terra sob os nossos pés, com o céu sobre as nossas cabeças, com o sistema produtivo, com as coisas invisíveis, com a alimentação, com os sonhos. Quero ler “A queda do céu”, do Davi Kopenawa Yanomami e Bruce Albert, o livro novo do Drauzio Varella sobre o Rio Negro e o livro velho da Eliane Brum sobre a Amazônia. Fora, claro, “A vida não é útil”, e tudo o mais do Aílton Krenak.
Por enquanto, junto com a Natassja Martin eu tô lendo “O despertar de tudo”, onde os pesquisadores David Wengrow e David Graeber exploram a influência das cosmovisões ameríndias no pensamento iluminista europeu. Ao contrário do que a gente aprendeu na escola, essa influência nessa outra via existiu e foi fortíssima. Por exemplo, eles relatam que há registros de como os jesuítas achavam abominável a noção de “liberdade individual”, enquanto os indígenas consideravam os franceses quase como escravizados pelo sistema de hierarquias e autoridades em que eles viviam. Vivendo em sociedade, quase nada do que a gente considera “natural”, é natural mesmo.
Eu acho maravilhoso que a gente esteja presenciando uma mudança de eixo de como as coisas acontecem no nosso planeta, e que o longo século XX não seja uma espada cravada em pedra. Que o século XXI seja do oriente, da China, do meio-ambiente-centro da nossa nobrevivência, da coletividade como princípio, do fim da masculinidade, da possibilidade de uma nova espiritualidade, reconectada com as tradições que nos fundaram e menos burocrática e mais sensível.
“O encadeamento das múltiplas crises ambientais e políticas mostra que o edifício teórico que serve de base à modernidade produtivista literalmente fracassa em englobar os seres que ele deveria federar para aumentar sua eficácia e seu poder. Toda a questão passa então a ser: o que se cria nas ruínas desse edifício?”
Parece bobagem, mas eu ainda não superei o dia em que passei a tarde toda lendo um artigo de uma professora de quem eu nunca tinha ouvido falar para em seguida, assim que terminei, receber um telefonema do meu chefe me convidando pra trabalhar com ela.
Tampouco superei um documentário da Netflix sobre a busca por quatro crianças que ficaram perdidas por 40 dias na Amazônia colombiana. É angustiante ver o exército, todo cheio de homens brancos católicos treinados pra guerra com quase nenhuma competência pra navegar no território da floresta, que tem sua linguagem, suas entidades, seus símbolos, seu cosmos. Quando finalmente decidem chamar líderes indígenas para tocar a busca, o que acontece éentorpecente.
E temos um novo papa! Ainda progressista, ainda latino, ainda atento ao fato de que a Igreja é secular, mas existe no século XXI. Esse mesmo, que precisa atravessar o apocalípse mais que real se pretende chegar ao século XXII. Desde a pandemia, eu choro toda vez que entro em uma igreja católica. Penso que eu poderia ter morrido, e não morri. Penso que, a despeito das desgraças e atitudes patriarcais que a igreja católica perpetrou, foi nela que eu cresci. Que meus generosos pais me colocaram na catequese com 12 anos (e não 7, como era de hábito), pra que meu irmão e eu entendêssemos melhor o que estava acontecendo. Que há uma sutileza em escolher o pronome de lugar, e não de pessoa, para as figuras sagradas, mais que de pessoas (me consolo em deus).
Então é isso, eu ando desencantada - melancólica, jururu - precisando me inspirar em outras cosmologias. A natureza da cidade sempre foi um lugar onde encontrei esperança, mas está na hora de esticar o horizonte.
Uma ótima viagem a todos! :)
: Dicas a bordo :
~ The west is bored to death (O ocidente está morto de tédio)
~ O papa e a pachamama
~ Você sempre esteve sozinha (podcast)
~ Brotou uma floresta no meio de São Paulo
~ Nem toda arte tem moldura (
)~ Natureza urbana - livro lindíssimo de uma escritora portuguesa que eu descobri na FLIP do ano passado
Até a próxima!
Luísa
Eu amei Escute as feras e estou com A leste dos sonhos na pilha de livros esperando ser lidos. Já estava esperando amar, agora com sua resenha, estou mais ansiosa e cheia de expectativas sobre ele!
ótimo texto, fiquei com vontade de ler todos os livros contados por você!