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A literatura, enquanto produção escrita, nasce de um lugar íntimo - e essa é uma riqueza particular. É também por contar com simplicidade nos seus meios (lápis e papel, teclado e tela, silêncio e presença), que permite ser construída no âmbito da solidão e de introspecção. Certo, até chegar a ser produto, físico ou digital, há outras mãos envolvidas, mas, aqui, olho para o percurso do processo criativo. A solidão é um espaço vivo.
Podemos pensar que, na verdade, nunca estamos “sozinhos” de fato sozinhos, mas sim com a companhia estranha de nós mesmos. Considero que é esse diálogo interno é uma das matérias da escrita: observo o mundo, elaboro, transbordo. A escrita permite organizar, ainda que seja só para si, o próprio pensamento, a própria observação. Comprovar-se vivo: me mostro mim mesmo, assumo que há valor nisso que coloco no papel à frente de mim.
Se elaboro a literatura dentro da minha própria cabeça (corpo!), não é apenas de si que o si mesmo se alimenta, mas o mundo externo também me compõe. A literatura fala de seu tempo, suas referências a paisagem que cerca, sufoca e liberta os indivíduos. A escrita, uma vez validada pela própria voz que cobra do escritor a sua existência, nasce com um voto de confiança. Ao leitor, anônimo, ofereço meu pensamento, meu olhar, minha elaboração, minha invenção, meu tempo. Por isso é, também, um ato de coragem.
Lê-se em solidão porque ler é como ter uma companhia. Leio para abrir uma porta e me liberar de mim mesma. Oferecer a minha atenção àquela que me ofereceu a sua voz. Leio por cansaço, por medo, por procura e por curiosidade. Leio porque não preciso de autorização.
Porque leio, interpreto, crio sentido e alimento o diálogo da minha solidão. Um mundo antes circunscrito à minha intimidade, se expande. De leitor em leitor, o texto muda, e, sem que se perceba, há uma colisão, não foi isso que eu quis dizer. Mas quem diz da obra é também o leitor, faço minhas também as suas palavras, pra mim é assim. Dessa forma, o livro ganha contornos externos no mundo em que nasce. Suas margens são mexidas, cresce a distância entre autor, significado original, leitor, interpretação.
Qual não é o meu alívio, um abraço, perceber que o autor desconhecido alcançou a minha intimidade, me ajudou a me traduzir, deu nomes ao meu mundo. O sentido cresce, as vozes se acumulam, o texto ganha corpo coletivo, é o registro de uma época. Esse não é um processo de dissolução, mas ao contrário, quando essa comunicação entre duas vozes se amplia, gera eco, ganha corpo. E quando o texto ganha espaço na memória coletiva, sabemos que foi, ambiguamente, solidão e multidão.
Uma ótima viagem a todos! :)
Comecei um curso novo sobre literatura e escrita. A partir de uma provocação sobre a solidão da escrita e da leitura em relação ao diálogo que nasce a partir de um texto escrito, isso foi o que eu escrevi.
Até a próxima!
Luísa
"Leio porque não preciso de autorização."... é isso, Lu! Que texto maravilhoso. Amei tanto que compartilhei na minha news.
Me identifiquei tanto! Parabéns pelo texto, Lu!