Marcovaldo e as cidades que moram nos livros
"Marcovaldo dirigiu-se maquinalmente ao ponto do 30 e bateu o nariz no poste do ponto. Naquele momento, se deu conta de ser feliz: a neblina, cancelando o mundo ao redor, lhe permitia conservar nos olhos as visões da tela panorâmica. Também o frio era abafado, como se a idade tivesse vestido uma nuvem semelhante a um cobertor. Marcovaldo, agasalhado com seu capotão, se sentia protegido de toda sensação externa, jogado no vazio, e podia colorir esse vazio com as imagens da Índia, do Ganges, da selva, de Calcutá".
Trecho de "Marcovaldo, ou as estações na cidade", livro de Ítalo Calvino de 1963.
Ítalo Calvino é um escritor italiano muito conhecido entre os arquitetos pelo seu livro "Cidades invisíveis", uma verdadeira obra prima sobre um mundo fantástico onde cidades fora do normal expressam imagens das coisas da vida. Na verdade Calvino nasceu em Cuba, mas logo depois foi pra Itália, onde publicou suas obras, lutou contra o fascismo e foi membro do partido Comunista. "Marcovaldo" é um livro de contos mais simples, mas é o meu favorito: um trabalhador humilde em seu cotidiano na cidade, com um olhar surpreendentemente atento pra delicadezas aqui e ali. Nessa passagem curtinha, ele vai ao cinema, lugar muito mais confortável que sua própria casa e onde ele pode viajar por imagens surreais e, quando ele sai, que sorte, há neblina, e as únicas imagens que ele consegue ver à sua frente são aquelas que ainda ficaram da tela.
Anda na moda fazer listas de metas de leituras, mas quando um dia parei pra começar uma, percebi o erro. Qual o sentido de transformar mais um lazer em obrigação? Ah, mas as vezes a pessoa quer se organizar pra ler mais. Mais? Acho que basta ler. Muito mais legal que bater x números de páginas em x números de dias ou meses, é viajar em uma história. Carregar aquela imagem consigo, stalkear aquele personagem na própria imaginação por quanto tempo for possível. Vai que você só conseguiu ler cinco páginas naquela semana mas ficou pensando no livro enquanto esperava o ônibus ou quando alguém falou alguma coisa no trabalho. Já não serviu? Não é pra isso que serve a literatura? Quando não dá pra viajar, pegar um livro ou ir no cinema é como andar na Avenida Paulista aberta num domingo: cada esquina, um mundo diferente. Aqui uma banda, ali uma performance, algo que te diga que no lugar que você conhece, de repente há mais coisas. Mais um parágrafo, um café, um yakisoba ou uma esfiha. Em uma estória, uma trilha nova, um nascer do sol, na página seguinte a Paris mestiça do Gaël Faye, presente em cada ponte do Sena:"Paris, minha bela, eu te amo, quando a luz vai se apagando, não escrevemos poemas pra uma cidade que em si é um".
"Paris ma belle je t'aime quand la lumière s'éteint
On écrit pas de poèmes pour une ville qui en est un"
Uma ótima viagem a todos! :)
: Dicas a bordo :
~ Literatura é uma maneiras mais legais excêntricas de viajar - mas até que outras bem legais, como o AirBB te levando pra Antártida
~ 10 ótimos livros de design que não foram escritos por homens
~ O Tarô de Salvador Dali <3
~ Na revista Ensaios sobre a Loucura, um poema às 9 da manhã
Até a próxima,
Luísa