Trem das Onze é uma newsletter sobre a vida urbana. Da cidade que acorda, da calçada que encontra, da praça que acolhe, do trem que passa. Inscreva-se para receber em seu e-mail textos quase quinzenais.
Na semana passada o Júnior Bueno, da Cinco ou seis coisinhas me fez rir muito e viajar pra época que eu andava pelo Rio cantando coisas que eu jamais falaria pra alguém tipo “ô simpático, pára de formá ca-ô”. Foi durante os gloriosos anos dois mil que o funk da periferia invadiu o asfalto, e qualquer adolescente de classe média sem graça como eu passou a conhecer o nome de áreas da cidade nunca antes ouvidos por nós, como Cosmorana, Mutuapira e a Estrada da Posse. O Rio de Janeiro, quando eu era adolescente, era basicamente Niterói, e, embora a garotada ouvisse muito backstreetboys, era o funk antigo que embalava nossas dores de cotovelo. E, em pouco tempo, era impossível não ir em uma boate chique da zona sul sem ouvir Sapão e Denis DJ antes da festa acabar (saudações Baronetti!).
Anos depois, na faculdade de arquitetura, minha querida professora Sonia Ferraz, ensinava Teoria da Habitação mesclando textos de Engels sobre a classe trabalhadora na Inglaterra com as letras de Rap da Felicidade e Rap do Silva. Se você nunca passou da parte de “eu só qué-ero é ser fê-liz, andar tranquilamente na favela onde eu nas-ci”, me permita compartilhar com você o que Cidinho e Doca cantavam nas favelas do Rio de Janeiro cantava na década de 90:
“Diversão hoje em dia, não podemos nem pensar/Pois até lá nos bailes eles vem nos humilhar/Fica lá na praça que era tudo tão normal/Agora virou moda a violência no local/
Pessoas inocentes que não tem nada a ver/Estão perdendo hoje o seu direito de viver/Nunca vi cartão postal que se destaque uma favela/Só vejo paisagem muito linda e muito bela/
Quem vai pro exterior da favela sente saudade/O gringo vem aqui e não conhece a realidade/Vai pra zona sul pra conhecer água de côco/E o pobre na favela vive passando sufoco/
Trocaram a presidência, uma nova esperança/Sofri na tempestade, agora eu quero a bonança/O povo tem a força, precisa descobrir/Se eles lá não fazem nada, faremos tudo daqui/
(quero ouvir, vamo lá)”
No Rap do Silva, a história é simples e forte: um trabalhador pai de família, sai de casa para ir ao baile funk e não volta, é assassinado no caminho:
Era trabalhador, pegava o trem lotado/Tinha boa vizinhança, era considerado./E todo mundo dizia que era um cara maneiro/Outros o criticavam porque ele era funkeiro./O funk não é modismo, é uma necessidade/É pra calar os gemidos que existem nessa cidade.
Todo mundo devia nessa história se ligar/Porque tem muito amigo que vai pro baile dançar./Esquecer dos atritos, deixar a briga pra lá/E entender o sentido quando o DJ detonar.
Todo mundo devia se ligar nessa história, porque todo mundo tem um amigo que vai pro baile dançar. O funk é uma necessidade pra calar os gemidos da cidade.
E eu acho que a minha professora estava é certa e a gente deveria prestar mais atenção nas letras que contam as histórias da população, entender o sentido, mesmo que dê vontade de dançar.
(É som de preto, de favelado, mas quando toca, ninguém fica parado /o/)
Eu não sei em qual momento o funk se mudou desse lugar de denúncia social e romance pra um lugar de hipersexualização e ostentação. Faz tempo que não ouço funk, ou que não revisito Bob Rum com a alegria dos 15 anos. Mas Junior me deixou uma pulga atrás da orelha. Vamos pro Spotify. Na playlist “Funk Hits”, eu não conheço nenhuma música, e temos “Puta mexicana” em segundo lugar, “DJ TAK VADIÃO” nos cantores da nona posição e um oitavo que me dá vergonha pronunciar. Antes que eu caia num lugar de “volta Marcinho, o homem mais romântico do brasil”, penso que gosto mais dos meus leitores que do spotify. Então eu te pergunto, o que você tem ouvido de novo por aí, que te anima?!
Uma ótima viagem a todos! :)
:Dicas a bordo:
~ Funk.doc: um documentário da HBO sobre essa revolução cultural
~ “Habitação social, projetos de um Brasil”, série de 13 episódios contanto projetos de habitação de que sonharam um Brasil mais democrático. Eu assisti no Prime Video, mas está disponível também no youtube
~ A news do Júnior Bueno que eu mencionei no início:
~ A mulher por trás dos vitrais de Brasília, na Makers gonna make, uma ótima newsletter sobre design:
~ E a Tabulla, outra sobre design, inovação e arquitetura, aqui fala sobre a falta de sentido em pagar caro por algo mais “sustentável”:
Até a próxima!
Luísa
eu não entendo nada de funk, mas desconfio que quem critica o estilo por conta das letras com discursos do tipo "só fala de putaria" só está sendo preconceituoso por conta das origens do gênero mesmo e não conhecem nada além do que a mídia mainstream mostra. digo isso porque TODO gênero tem letras "pesadas" digamos assim. eu por exemplo amo hard rock dos anos 80, mas é cada letra que beira um crime que aparece (e isso não é uma piada, me refiro a letras que sugerem relações com meninas muito novas e/ou que as mulheres são objetos sexuais). e o sertanejo universitário então nem se fala.
e como você comentou, imagino que tenha acontecido um movimento de transformar o funk de uma coisa p outra, mas acredito que isso seja mais dos movimentos do capitalismo. com certeza, não é de interesse da grande utilizar a música como objeto de denúncia. enfim, obrigada pela news <3
Aeeee, amei o post!!!