O apocalipse é anti-urbano
"These images are haunted and haunting, like stills from movies about plagues and the apocalypse, but in some ways they are hopeful. They also remind us that beauty requires human interaction". Michael Kimmelman para o New York Times. Foto: uma estação de metrô em Munique, de Laetitia Vancon.
No final da década de 1970, o sociólogo Carlos Nelson Ferreira dos Santos desenvolveu um trabalho na favela do Catumbi, no Rio de Janeiro, que se tornou um dos marcos do pensamento urbano no Brasil. Esse trabalho foi publicado com o nome “Quando a rua vira casa”. Em comparação ao projeto de urbanização modernista do Selva de Pedras (conjunto habitacional no Leblon), Carlos Nelson mostrou que o uso dos espaços coletivos no Catumbi era um aspecto intrínseco à vitalidade daquele lugar e à construção de laços comunitários.
Essa ideia acompanhou o debate urbano por muitas décadas: a cidade precisa de pessoas, as pessoas precisam da cidade. Esquinas, encontros fortuitos, caminhadas, atividades distintas disputando o espaço das calçadas, a Avenida Paulista num domingo, mesmo nublado.
A casa, por outro lado, é dos espaços da intimidade, do privado, da família. Na época dos estudos no Catumbi, Carlos Nelson observou que a rua virava casa pois borrava esses limites. Os vizinhos colocavam cadeiras na calçada pra conversar e ali também faziam várias atividades de lazer. O espaço público é pra todos.
Contra minhas melhores expectativas, vi nas últimas semanas que o colapso do sistema é anti-urbano. Evitamos a cidade para evitar nos encontrar pra preservar a vida humana e acabamos por preservar a também a cidade. Evitando a vida pública, pudemos olhar de longe outras coisas que estavam mal e só não levaram ao colapso antes, porque os interesses econômicos eram mais fortes. De longe, olhando o vazio, percebemos que o tempo não estava dando conta, e muito menos a cidade. Céu limpo em São Paulo, água transparente nos canais de Veneza: falhamos com a cidade e não mudamos, precisamos uma doença pra pararmos. É longe dos outros que a casa agora vira rua, com direito à áudio viralizado no whatsapp sobre reuniões na varanda e happyhour na cozinha. É da sala que fazemos chamadas pra ver os amigos e a família que ficou lá, do outro lado da cidade, lá onde a janela não alcança. É na porta ao lado que oferecemos ajuda aos vizinhos idosos ou com crianças (quem mais está vulnerável?) Encontramos tempo pra sentir tédio, a falta da cidade que pulsa. Nos espaços vazios das praças, preenchemos com nossas mesas de jantar, pra tentar, mesmo fora do espaço, manter alguma urbanidade.
Uma ótima viagem a todos! :)
:Dicas a bordo:
Especial sites que publicaram ensaios fotográficos da nova ordem pública:
~ News York Times e um ensaio de tirar o folêgo
~ El Pais Brasil: metrópoles tropicais esvaziadas
~ O Globo: fique em casa
~ Bloomberg Green: drones registram o vazio
~ The Atlantic: a vida pública em tempos de pandemia
~ Enlarge your Paris: a periferia parisiense na janela
Até a próxima,
Luísa
PS.
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