O trabalho de cuidado: uma forma de pensar cidades
"Femme maison" (Casa mulher): trabalho da artista Louise Bourgeois.
Normalmente começa assim: a creche fica longe do trabalho, na pracinha do bairro os brinquedos estão quebrados, o ponto de ônibus fica em uma calçada ladeada por um muro, sem a segurança dos "olhos da rua" que Jane Jacobs tanto prezava, o parque é cercado por avenidas, o bairro inteiro é exclusivamente residencial e o posto de saúde fica no alto do morro, acessível apenas por duas baldeações de transporte público. De muitas formas a cidade enquanto infraestrutura para a vida urbana prejudica a ocupação das pessoas e prefere a circulação de mercadorias. Nesse período da pandemia, as atividades, pessoas e lugares chamados de serviços essenciais e de cuidado passaram para o foco do sistema de funcionamento das coisas
O termo "trabalho reprodutivo", muito divulgado no Brasil a partir da obra da socióloga italiana Silvia Federici (especialmente no livro "Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva"), trouxe luz para um trabalho pouco reconhecido que é o de manter a vida. Alimentação, abastecimento do lar, limpeza, cuidado das crianças, idosos e enfermos: atividades tradicionalmente atribuída às mulheres não foram reconhecidos como tal no sistema capitalista - ou melhor, foram propositalmente invisibilizados para não serem remunerados - mas são fundamentais para a criação e manutenção das pessoas e sua força de trabalho.
"O trajeto priorizado é o das mercadorias – e, por conseguinte, o “ir e vir do trabalho”, transformando-nos todas e todos em produtos da vida urbana. A virtual segurança do lar, muitas vezes, é mais mortal que as ruas e o vírus: no Brasil pré-pandemia, uma mulher, a cada dois minutos, sofre violência doméstica; a cada 7 horas, uma é assassinada.
Mas diante de cidades planejadas e construídas sob uma visão capitalista, androcêntrica e racista, o Urbanismo Feminista propõe uma mudança radical de paradigmas, baseado em diagnósticos minuciosos da realidade, considerando-se as desigualdades históricas e a diversidade de cada lugar, e em mecanismos verdadeiramente participativos, em oposição a ações genéricas. É uma forma colocar a vida no centro do planejamento urbano — e valorizar a esfera reprodutiva antes da produtiva". Texto de Adriana Ciocoletto publicado no Outras Palavras".
Um planejamento que considera o cuidado se propõe então a equilibrar os trabalhos produtivos e reprodutivos ambos como parte do desenho das cidades e das infraestruturas que permitem que a vida ali se desenrole. A escala local e suas necessidades coletivas são imperativos, pelo qual administrações menores se fazem mais eficientes, seja com subprefeituras ou com "arquitetos de bairro" (profissional que poderia ser responsável pela manutenção das estruturas existentes e atendimento de eventuais demandas). Soluções de grupo para o cuidado das crianças, também pedem espaços que sejam menos isolados, mas com pátios ou quintais coletivos, por exemplo. A sabedoria das mulheres, no conceito de Urbanismo Feminista, é fundamental.
E isso nos leva à provocação tão importante de Antonio Lafuente (ambos textos estão nas dicas dessa carta): "O coronavírus tem nos ensinado muitas coisas — algumas delas, vamos demorar para esquecer. Porém, poucas foram tão inesperadas como a aproximação entre a cultura crítica e a cultura dos cuidados". Que os ensinamentos somados das práticas cotidianas, dos cuidados do tato, da escuta, da sensibilidade que percebe um viés em um banco de dados e aproxima a confiança da ciência com a confiança da experiência: um urbanismo que se aproprie dessa forma de enxergar a realidade será com certeza mais completo.
"A questão é evitar a guerra, e reiniciar a convivência. E é disso que precisamos agora: uma negociação que torne possível não só a convivência de epistemes. Os mundos dos dados, dos fatos e das experiências precisam um do outro e têm de aprender a conviver sem se censurarem". Antonio Lafuente para o Outras Palavras.
Uma ótima viagem a todos! :)
:Dicas a bordo:
~ Esse artigo super importante no Outras Palavras sobre a potência do cuidado
~ E também: Urbanismo feminista e a cidade do cuidado
~ Como o modelo de casa para uma família alimenta o patriarcado
~ The Guardian: como o coronavirus vai remodelar nossas cidades
~ Nova York não foi desenhada para estar vazia
~ "Políticas públicas, sistema político e arquitetura": as arquitetas negras Gabriela de Matos, Tainá de Paula e Joice Berth protagonizam esse debate no IAB-SP
~ Bright nights, lonely crowds: esse vídeo de tirar o fôlego, mesmo com só 3 minutos, do diretor Hiroshi Kondo sobre contradições urbanas de Tokyo através do sistema de trens.
Até a próxima,
Luísa
PS. Quer ler as cartinhas antigas? Vai no View Letters Archive.
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