Pouco antes de eu nascer, os meus pais eram
um casal de classe média que havia voltado à morar no Rio de Janeiro depois de um período fora do país, olhavam para um futuro em que queriam construir uma família
se depararam com uma zona sul cara, com apartamentos pequenos, caros e pouca infraestrutura para crianças e foram oferecido a seguinte propostaum bairro novo perto da zona sul
um condomínio de prédios novos
grande, com não uma piscina, mas várias
tinha também varanda, quadras esportivas, um lago e patinhos.A Barra da Tijuca na década de 1980 era ocupada pelo condomínio em que meus pais foram morar, outro condomínio que depois caiu porque o engenheiro o construiu com areia da praia, o Barra Shopping versão beta
naturezas e promessas.Eu esperei 34 anos para a rede globo fazer uma “novela” sobre o lugar onde eu passei a minha infância, entre lagos e patinhos, parquinhos, babás e a promessa de segurança que a classe média carioca tanto precisava. O seriado tem uma produção lindíssima, a trilha sonora é certeira, os atores estão inspirados e o roteiro é viciante. Minha mãe sempre falou que coisas bizarras aconteciam
nos condomínios da Barra da Tijuca.
Espero que
não tão bizarras como nos da rede globo😵💫.Teve uma época da minha vida em que eu estava tão triste que joguei “sofrimento” no google pra ver se a internete me dava uma luz e eu descobri o trabalho do Christian Dunker, um psicólogo professor da USP que gravou um café filosófico em que não só ele falava de sofrimento como de condomínios. Sobre a ficção que o Brasil criou de que a vida cercada poderia conferir algum status de qualquer coisa, em uma irreal busca por deixar o confortável dentro, e o desconfortável fora.
Foi no décimo episódio que “Os outros” foi totalmente explicado pra mim. São 12 no total, que contam a história de duas famílias que moram em um condomínio junto com uma síndica corrupta e um ex-policial miliciano. A trama se desenrola entre brigas e vinganças entre os moradores, casais cariocas que também acreditaram na promessa que o condomínio oferecia de segurança (risos), de controle, de uma vida próximas dos seus pares.
(🎬 Alerta spoiler!) Mas é a Adriana Esteves que rouba a cena. Cibele, a personagem da mãe obcecada, que não consegue ver que seu filho adolescente já não é mais uma criança, a mãe preocupada, cuidadosa, demais,
superprotetora.Um termo que eu ouvi minha vida inteira para descrever a minha mãe. Tava bem ok achar essa mãe uma chata irremediável até o episódio do final da série mostra que o casal Cibele e Amâncio perderam um bebê alguns anos antes de Marcinho (filho deles), nascer). Abre-se um lugar em outro universo em que não se pode compreender a dimensão de uma mãe que perdeu um bebê.
Tá na moda explicar porque os personagens fazem as coisas que fazem, voltar atrás no seu passado no seu trauma nas suas dores pra gente entender que tá todo mundo correndo atrás do rabo do próprio passado. A minha mãe era muito superprotetora. Ela achou que eu estaria segura em um condomínio da barra, mas eu caí furei meu joelho levei doze pontos e uma cicatriz enorme, mas pelo menos essa é visível.
Os outros é uma série sobre convívio de vizinhos à beira do colapso, e também sobre adolescência. Se a gente olhar de perto, tudo começa e é conduzido pelo medo absoluto de Cibele em perder seu filho. E no seu filho em mostrar pra ela que não é mais criança. Que difícil deve ser, para quem é pai e mãe, perceber que a década que eles investiram em manter um ser vivo vivo, agora mudou. É tempo demais, energia demais investida pra que um ensaio de adulto possa decidir que tem uma vida por si só. As cenas mais bonitas (do seriado e da vida real) é quando eles conseguem se esquecer da ameaça da morte e conviver, mãe e filho e pai, como se o proprio pulso dos dias bastasse pra garantir segurança, felicidade.
Eu sempre detestei sensação da minha mãe achava que eu estava em risco de morte o todo o tempo. Uma energia definida por traumas que vieram antea de mim, mas que vai sempre me atravessar. Em condomínios, em não me deixar andar de ônibus sozinha até quando eu ser quase adulta, no desespero de cada tropeço. Eu consigo aliviar essa sensação quando podemos conviver como pessoas que tem um futuro pela frente. Eu amo ouvir as história dela de antes de eu existir, de antes de ela existir pra mim, e amo conversar sobre as coisas do presente. Em duas semanas eu completo 35 e já posso dizer pra ela o quanto vencemos o tempo. Nós vencemos. Até ~1970, 35 anos era considerado meia idade. Penso que, mesmo que eu (ainda) não seja mãe, sou muito feliz por ser filha. E poder chegar na idade em que o cuidado não é mais quesito de sobrevivência, (ainda que bem-vindo). Que privilégio eu tenho de conviver com uma simpática senhora, inteligente, interessada, boa de papo. Que tá sempre por dentro das notícias, que fica feliz pelas minhas conquistas, que deixa eu deitar na cama dela quando estou triste ou cansada ou os dois. Eu me irrito facilmente quando estou contando algo importante que vou fazer e ela me corta “mas já viu que vai chover leva um casaquinho” ou qualquer outro comentário de mãe. Mas eu perdoo porque essa mãe precisa de um desconto. Eu pensei durante todo o tempo em “Os outros” que alguém podia apenas dizer pra Cibele que tava tudo bem, que o filho dela era um menino normal, saudável, que tinha sonhos e que ia viver bem. Que a vida pode incluir risco, desventuras, adolescência, distanciamento dos pais, reconhecimento de si. E que esse é o único caminho para sobrevivermos fora dos condomínios.
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Das propostas civilizatórias que não deram certo:
~ Esse programa especial do Spotify onde Gabriela Prioli, Lucas Paraizo (autor da série) e Luisa Lima (diretora artística da série) recebem convidados para conversar sobre a série;
~ O Cinemático, meu podcast de cinema preferido, também fez um programa sobre a série;
~ Imagina uma cidade onde os novos prédios tem apartamentos de 20m² voltados pro ainbnb - um debate sobre o novo Plano Diretor de São Paulo;
~ Eu prefiro quando o espaço público é gratuito: olha essa crônica gostosa da
em Berlim.Até a próxima!
Luísa
Eu gostei bem mais da sua edição do que da série, que assisti com muito entusiasmo até o quinto episodio, depois o roteiro infelizmente foi se perdendo e eu continuei vendo na esperança de melhorar, mas não aconteceu. Hoje eu passei horas conversando com uma grande amiga, que editou a série e ela concordou comigo sobre os problemas estruturais narrativos que condenaram a trama (na minha humilde opinião) e eu achei um pecado uma ideia tão original, um argumento tão bom, com um elenco (quase todo) tão incrível ter tido tantos furos no arco dramático. Pelo menos a série serviu de gatilho pra você escrever essa beleza de texto. Um beijo Lu!
não vi a série, mas gostei demais dessa edição <3