Só quem é clarividente pode ver
Paris. Fotografia de Bertrand Kulik @ptrenard
Quando voltei de Paris, bem no comecinho do ano, cheguei com uma vontade tão grande de chegar que minha cabeça realizou um exercício estranho de presente. Praticamente nunca pensava na França ou nas coisinhas parisienses. Isso foi mudando aos poucos, e esses dias, por acaso, sonhei que andava por lá. Passeava por uma lateral do Jardim de Luxemburgo e podia ver a torre Eiffel bem grande na minha frente, cena que só num sonho, já que um está bem longe da outra. A Torre deve tomar muita liberdade para andar pelas cidades nos sonhos estrangeiros, já que pertence à ordem dos mitos e dos símbolos. Os cantinhos de Paris viajaram por todo o mundo em busca de mentes ansiosas pela metrópole, pelo fim de uma vida aristocrática e começando a ser burguesa, comercial e cultural. Desde o início do século XX, boa parte dos escritores que se importavam com cidades tiveram por lá: Ernest Hemingway passou fome no tal jardim de Luxemburgo lá pelos anos 1920, Simone de Beauvoir escrevia nos cafés da Rue Saint Germain-de-Prés em 1940, até uma jovem Patti Smith, que não tinha um tostão furado em 1970, passou lá pelo cemitério de Pére-Lachaise ver a tumba do Jim Morrison. Já Mario de Andrade, que não foi, mas sempre se irritava quando recebia falas do tipo "você diz isso porque nunca foi à Paris", escreveu, em 1940:
"Aliás, é um forte engano isso de imaginarem que nunca estive em Paris. Não creio seja possível a existência de um intelectual mais ou menos, nos tempos que correm, ao qual as exigências de sua própria cultura não tenham dado o sentimento de Paris. E este sentimento, este conhecimento sensível da grande cidade não deriva especialmente das críticas, das descrições, dos elogios e ataques a Paris que tenhamos lido. (...) É a nossa inteligência, a nossa cultura e especialmente a nossa sensibilidade que, reagindo sobre dados menos didáticos e mais reais que uma descrição ou crítica, por exemplo, uma fotografia, um telegrama de jornal, um suspensório, um livro, um perfume, um selo de correio, e milhares de outros retalhos do concreto, até mesmo uma carta geográfica, provocam esse conhecimento sensível, que a nossa própria realidade. Pode ela estar afastadíssima do real verdadeiro, nós jamais a abandonaremos nem mesmo depois de confrontada com a realidade. Para nós ela será sempre o real mais verdadeiro".
Ele falava da enxurrada cultural francesa onde viviam os brasileiros naquele época. Quando francês era ensinado nas escolas, produtos eram importados, o Teatro Municipal do Rio foi copiado da Opéra de Paris - Palácio Garnier, e o prefeito do Rio, Pereira Passos, resolveu reformar a Avenida rio Branco pra parecer París. Também foi nessa onda que São Paulo batizou um bairro de Campos Elísios e um aeroporto de Campo de Marte (sabe aquele jardim enorme em frente à Torre Eiffel? Champs de Mars).
Em tempos de péssima influência americana, seja na cultura, no urbanismo ou na gestão de fronteiras - fica a dica: Paris está fazendo a maior ampliação do metrô do ocidente, ampliando a mobilidade nas periferias - até letreiro em árabe vai ter - tema pra uma outra cartinha ;)
Uma ótima viagem a todos! :)
Como temos vários novos leitores viajantes nessa cartinha de bordo, gostaria de lembrar que todas as edições ficam guardadas aqui e que esse link consta no primeiro "ps" que vai sempre no final de cada edição.
: Dicas a bordo :
~ Metrópole agrícola: um tema muito presente em Paris no ano passado, e que agora terá a maior fazenda urbana do mundo
~ As cidades europeias não foram feitas para esse nível de calor (e algumas pessoas resolveram ir nadando pro trabalho)
~ Reformas na Nigéria e quando a arquitetura é sobre restaurar cultura
~ A mobilidade urbana por bicicletas em São Paulo, 6 anos após junho de 2013
Até a próxima,
Luísa
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