"Se essa rua se essa rua fosse minha...
Personagens do Romance "A amiga genial", de Elena Ferrante, em Nápoles, no seriado da HBO.
Eu comecei a ler "A vida mentirosa dos adultos", o mais novo e muitíssimo aguardado livro da Elena Ferrante, autora da quadrilogia "A amiga genial". Mais uma vez a cidade: Nápoles. Mais uma vez um percurso, uma força de atração e expulsão com o ambiente em que se cresce, do chão de pedra e asfalto, às pessoas que os riscam, às nuvens que se ocupam dos sonhos dessas mesmas pessoas.
Mas agora um caminho inverso: se Elena Grego fez de tudo para conhecer o mundo fora do bairro periférico em que cresceu, Giovanna se dá conta que só vai conhecer o (seu) mundo se voltar ao bairro periférico onde sua família se formou, seus pais cresceram e onde deixaram seu passado.
"- Vamos fazer o seguinte: você conhece a Via Miraglia?
- Não.
(...)
- E Arenaccia?
- Não.
- E toda a região que se chama Zona Industrial?
- Não, mamãe, não.
- Bem, você precisa aprender, esta é a sua cidade. Vou pegar o guia de ruas e, depois de fazer os deveres, você estuda o percurso. Se é tão urgente, você pode ir sozinha até a casa da tia Vittoria um dia desses.
Aquela última frase me desorientou, me magoou, talvez. Meus pais não me mandavam sozinha nem comprar pão a duzentos metro de casa. E, quando eu tinha de encontrar Angela e Ida, meu pai, ou mais frequentemente minha mãe, me acompanhava até a casa de Mariano e Costanza de carro, depois ia me buscar. Agora, de repente, estavam dispostos a me mandar a lugares desconhecidos para onde eles mesmos iam de má vontade?"
É comum que crianças protegidas privilegiadas cresçam longe da dinâmicas urbanas que pareçam assustadoras aos seus pais, mas do que isso as priva? No caso da personagem de Elena Ferrante, de certa forma, de sua origem.
Na última cartinha eu contei algumas das minhas memórias de infância por aqui, e, conversando com um amigo também arquiteto e urbanista, ele me contou que brincava livremente na rua em que morava e também pelos terrenos baldios e obras abandonadas por ali, mas que legal mesmo foi quando começou a andar de ônibus, aos 12 anos: "eu ficava fascinado em entender os percursos que os ônibus faziam, pois tinha duas opções que me serviam, o Alto do Guaianazes e o Jardim Universo (esse era o nome do meu bairro, acho ele genial, imagina o que os ingleses das cidades jardim achariam disso!). Os dois ônibus faziam percurso praticamente igual mas invertidos, porém em algumas ruas do centro mudava por conta das mãos de rua (o que depois descobri se chamar binário). Tenho certeza que essas experiências moldaram meu percurso profissional".
Uma das minhas professoras de mestrado dizia que todo trabalho acadêmico era de certa forma autobiográfico e eu, que não andava de metrô quando criança, fiquei pensando e pensando. Concluí que o contato cotidiano com longas distâncias me deu um olhar para a cidade que também moldou, de certa forma, meu percurso profissional, sabendo diferenciar com alguma poesia as ruas áridas e segregadoras daquelas onde eu gostaria mesmo é de colocar pedrinhas de brilhante para o meu amor passar.
Uma ótima viagem a todos! :)
:Dicas a bordo:
~ Essa história e ilustrações lindas de uma escritora que tentou explicar a quarentena pra crianças e explicou foi muito mais sobre o modo como vivemos em sociedade
~ Quando crianças lêem literatura produzida por indígenas
~ Essa entrevista curtinha em podcast, do psicanalista Cristian Dunker sobre liberdade e seus limites
~ As cidades e as eleições municipais
~ Um tigre em um outdoor? Artistas reinventam o uso do espaço público em tempos de confinamento
Até a próxima,
Luísa