"Todo dia ela faz tudo sempre igual"
"Eu, a casa e a cidade, 2020", de Sandra Jávera para o Desestrutura
"A portaria, em tese, seria um lugar agradável de se ficar; bastante iluminado mas com sombra, suficientemente público e suficientemente privado. Só que a convivência intercondominial não estava prevista. Aquela portaria não era feita pra isso. Além da cadeira do porteiro, não ofereceria um banco sequer. Pessoas ociosas por ali, senhores e senhoras idosos pegando um sol de manhã, crianças brincando, babás conversando, moradores se relacionando, o movimento de gente perdendo tempo, fora da corrida, fatalmente atrapalharia o espírito do design. Remeteria ao tempo da sociabilidade arcaica, comunitária, estática, cheia de referências mútuas.
O prédio, ao contrário, obrigava a espécie humana a crescer mais rápido, a se libertar mais cedo de seus impulsos naturais, trazia-a, quisesse ou não, para um tempo à frente, o que não era bem o dela, ainda, mas que nunca haveria de ser sem o impacto da arquitetura. A disciplina de suas linhas deveria penetrar o olhar e, na sequência, o espírito de cada um. Conscientizar o homem presente de seu papel futuro. Eis, em resumo, a utopia dos anos 60" - Trecho de "Vista do Rio".
As vezes, andando por uma rua qualquer, me pergunto se aquela rua poderia estar no Rio de Janeiro. Ou, se alguém tirasse uma foto de uma rua qualquer do Rio, se eu poderia saber que essa rua do rio está mesmo no rio? ou em são paulo? Não digo, obviamente, da rua da praia, ou daquela com fundo de montanhas, digo a calçada normal de todo dia, o pão na chapa, a casa de sucos, o chiado sotaque das mesas de jogo do Largo do Machado. Aquele desenho que me remete àquela forma de viver a vida, mesmo sabendo que é a vida que dá forma às coisas.
"Aí um analista amigo meu, me disse, que desse jeito, não vou ser feliz direito", Belchior.
Estou lendo "Vista pro Rio", romance do Rodrigo Lacerda, o que é um pouco irônico, já que tudo que eu não tenho nesse momento é uma vista carioca da janela. Mas como ler é uma forma de viajar com as ideias, está de bom tamanho. Lacerda fala do edifício "Estrela de Ipanema", que fica no número 765 da Rua Prudente de Moraes e foi projetado pelo arquiteto Paulo Casé - que viria a ser o tio da Regina - que não tem quase nada a ver com essa história - não fosse o filme que ela estrelou "Que horas ela volta" - que também mostra como residências podem ser projetadas em conivência com o comportamento dos seus moradores.
Nos anos 60, o futuro correspondia a formas geométricas, materiais brutos e estruturas firmes que conduziriam o homem moderno à sua melhor versão. Tantas ideias modernistas caíram por terra enquanto essa linguagem foi absorvida pela construção civil de formas que você nem iria querer saber. Mas as casas e prédios modernos eram arejados e iluminados muito por causa da preocupação com a higiene que assombrou moradores de cidades grandes há mais de um século. Revolução industrial, urbanização, gripe espanhola, pessoas amontoadas e ruas sujas lentamente viram prédios e casas mudarem.
Há 3 meses, a casa virou a única paisagem possível e eu nunca achei que compraria tantos acessórios para facilitar os trajetos, ocupações e limpezas de cada cantinho daqui. Os debates sobre o futuro do uso dos espaços públicos parece não ter fim, mas há pouco topei com um texto sobre o que mudou no interior dos espaços residenciais, mobiliários e cômodos com o passar das pandemias, e fiquei imaginando. Me peguei lembrando dos Jatsons, aquele desenho da família do futuro, onde a empregada doméstica era um robô e as pessoas andavam em esteiras rolantes casa adentro. Que futuro improvável. Achei mais provável que os apartamentos do futuro venham a ter halls mais equipados, esse pequeno espaço coletivos que distribui a circulação entre elevador e porta de entrada. No meu prédio, esse espaço já virou depósito de sapatos e lugar para distribuir doces entre os vizinhos (alguns deixaram pendurados nas portas!), mas não duvido que no futuro tenha uma torneira, talvez um banheiro, armários para casacos e sapatos, e, porque não, uma cesta onde se possa deixar coisas que você não precisa mais dentro da sua casa. Quando morei em Paris vi isso acontecendo em formatos diversos e funcionava até que bem. Quem dera tanto isolamento gerasse espaços privados mais coletivos.
Uma ótima viagem a todos! :)
:Dicas a bordo:
~ Visita virtual à Casa Azul: museu da Frida Kahlo no México <3
~ Armários, azulejos e lavabos: como as pandemias afetaram o interior das casas ao longo da história
~ Meu amigo Fabiano Prates Ravaglia também retoma os traços modernistas na preocupação com a saúde para pensar a arquitetura da pós-pandemia
~ Descoronizar o mundo, descolonizar o imaginário: essa reflexão importantíssima sobre a necessidade de repensar nosso modelo civilizatório
~ Carmem Silva, líder no "Movimento dos Sem-teto do Centro" em SP, escreve "sete verbos para se conjugar o morar"
~ Por quê precisamos de mais cooperativas de moradia
~ "Habitação Social: projetos de um Brasil" - ótima série da Amazon Prime contanto a histórias de importantes conjuntos habitacionais na história do Brasil e sua relação com a formação das cidades. Tem entrevistas com moradores e também com professores da FAU USP.
Até a próxima,
Luísa
PS. Quer ler as cartinhas antigas? Vai no View Letters Archive.
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