“‘Após golpear o peito, reprovou o coração com o discurso: “Suporta, coração: suportaste outro feito mais canalha no dia em que o ciclope, de potência incontida, comeu 20 os altivos companheiros; tu resististe até a astúcia a ti conduzir para fora do antro, pensando que morrerias’. Assim falou, abordando o caro coração no peito; e seu coração, obediente de todo, aguentou e resistiu sem cessar; ele próprio revirava-se para lá e para cá”. Canto 20, verso 15.
Ulisses não me pareceu um herói típico. Chora o tempo todo, sente saudade, conversa com deuses diversos, se traveste de mendigo para se misturar ao povo. Conta um monte de histórias, se perde no meio delas, ganha batalhas contra seres mitológicos e, antes de escapar, volta para exibir a vitória na cara deles. Vi que Ulisses não é um ser infalível, não é um deus, mas sim uma pessoa. Ele vai mais longe por conta da sua inteligência, e é por isso que seu adjetivo é o “muita-astúcia”.
Então eu resolvi ler os clássicos. Como alguns de vocês já sabem, no ano passado eu comecei a estudar literatura e esse ano decidi enfrentar algumas obras consideradas importantes pra nossa história ocidental. A Odisseia pareceu ser uma boa opção porque a Ilíada, que vem antes, é uma história de guerra e dessas eu fujo. Eu levei um mês e meio pra ler a tradução de Cristian Werner, publicada pela Cosac Naify. No final eu acabei gostando, mas sofri no começo porque a linguagem do livro é muito difícil. As frases tem a ação sempre invertida (até a astúcia a ti conduzir para fora”), dificultando o entendimento. Mas se teve uma coisa que me cativou foi a dupla de adjetivos floreando o texto. Cada personagem ou ente que aparece recebe uma caracterização logo após seu nome, e de alguma forma isso traz mais leveza pra leitura. Compilei aqui alguns dos meus favoritos (na tradução que eu li, Ulisses aparece como Odisseu - daí o nome “Odisseia”):
Odisseu muita-astúcia
Odisseu muito-juízo
Odisseu muito-truqueAtena olhos-de-coruja
Apolo arco-de-prataAurora dedos-róseos
Aurora belas-trançasPenélope bem-ajuizada
Posêidon treme-solo
Vinho adoça-juízoZeus ampla-visão
Zeus porta-égide
Zeus junta-nuvens
Inicialmente, eu me prometi que iria navegar apenas pelo texto, já que meu objetivo não era me aprofundar na mitologia grega. Mas os textos de apoio eram pra contextualizar a própria história, então no final eu li quase todos e ainda ouvi um podcast (deixei o link no final dessa edição). É lindíssimo pensar que essa não é uma história escrita por nascença, mas sim narrada oralmente. Um poema épico, contado em voz alta, de praça em praça, de palácio em palácio. A edição que eu li tem uma introdução do tradutor Christian Werner que me trouxe novos pontos de vista, como sobre a relação da saga de Ulisses com a guerra de Troia (contada na Ilíada), à qual ele sobreviveu:
A Odisséia elabora uma postura crítica, ou pelo menos polêmica, em relação ao modo como a Guerra de Tróia conferiu fama heroica a Odisseu e outros gregos.(...). É crítica, por exemplo, ao acentuar danos irreparáveis causados à casa de um senhor quando de sua ausência excessivamente prolongada (...) O fracasso da volta de Agamêmnon, episódio várias vezes lembrado na Odisseia, sugere que a glória obtida pela destruição de Tróia nada garante a posteriori, a não ser algum tipo de lembrança. (...).
O Odisseu que a Odisseia quer que admiremos não é o herói das façanhas guerreiras em Troia (...), é o espectador impotente da patética morte de seus companheiros. Nesses e em outros momentos, não é o herói, em primeiro lugar, que nos causa admiração, mas o estranho e fascinante mundo que conhecemos por intermédio dele.Meu canto favorito foi o 20, esse do trecho que destaquei lá em cima. Que coisa mais humana, isso de se angustiar com uma situação, por menor que seja, sob a qual não se tem controle. A cena continua muito linda, quando Atena chega pra ele e fala algo tipo “que angustia é essa? Tá tudo bem! Já voltou pra sua terra, viu sua mulher, seu filho, que que há?!” E ele responde algo tipo" “pode até ser, mas eu ainda sinto uma angústia enorme no meio do peito de ver esses caras sondando minha casa”, ao que ela responde “é, mas você tá se esquecendo que eu sou uma deusa, e tô aqui pra te proteger sempre, de todos os labores”. E em seguida ela diz algo muito parecido com a Bíblia (que, no caso, veio depois) naquela passagem “mil cairão à tua esquerda e dez mil à tua direita, mas tu não serás atingido”. Que incrível deve ter sido receber conselhos divinos de prontidão e em pessoa. Nesse dia eu também estava angustiada e me senti acolhida junto com Ulisses, mas lembrei mesmo foi da minha mãe, que me dizia coisas assim. E enviei uma foto do texto pra ela, que se emocionou muito.
Eu também amei a relação com as divindades e com a natureza. Tentei me transportar para uma época em que não se tinha tanto conhecimento científico sobre o mundo, e que a verdade sobre as ressacas do mar eram manejos de Poseidon, o treme-terra. Um mundo permeado por divindades que se materializam a cara hora de uma coisa, pra conversar com as pessoas, dar conselhos, guiar, transformar ou qualquer outra interação. Por todos os lados e para qualquer decisão, consulta-se os imortais.
Apesar disso tudo, me surpreendeu como somos tão parecidos, como civilização, com o povo narrado por Odisseu. As hierarquias sociais, a concentração de poder, o patriarcado, a violência, o ciúme, a guerra, a derrota. Não esperava encontrar tanta familiaridade em uma história contada oito séculos antes de Cristo. Aí me lembro que a Ilíada e a Odisseia são considerados poemas-épicos base do nosso imaginário coletivo ocidental. Temos muitas raízes em comum, seguindo por esse caminho. Sobretudo raízes humanas, se quisermos aprender. Nas minúcias da travessia gigante, da saga quase eterna, dos sentimentos sempre maiores que as fronteiras da viagem, no alento da redenção final.
Uma ótima viagem a todos! :)
:Dicas a bordo:
~ Eu li o livro na edição da Cosac Naify e gostei muito dos textos de apoio; mas passei a ouvir esse podcast que narra a história para acompanhar melhor os acontecimentos, já que o texto em si é bem difícil.
~ Lojas com história - amei esse projeto de Lisboa, contado pela
da~ Essa entrevista da 451mhz com a Luiza Romão -(a poeta dos slams de sp que publicou um livro de poemas que dialoga com a Ilíada)
~ Estamos cansados das boas moças? Uma análise interessante da Anne Helen Petersen sobre o desgaste da imagem da Taylor Swift e cia
~ “Nem todo mundo vai ganhar um Grammy, mas todo mundo nesse mundo é espetacular, então por favor não ache que isso é importante” - esse discurso da Miley Cyrus ao ganhar o Grammy
Até a próxima!
Luísa
Uma das coisas que mais lembro da faculdade é da primeira aula sobre a Odisseia. Não sei se você viu isso nas suas leituras, mas curto muito que o epíteto do odisseu é polytropos, que é astuto, mas também pode se dividir como poli/ tropos, "muitos lugares" - que já dá a letra de tudo que ele vai passar até a volta pra casa.
A Odisseia é cheia dessas coisinhas. É um trabalho com linguagem e a palavra em si muito impressionante!! E que bate super com toda a história do Odisseu de ser o herói que faz tantos jogos de palavras, como ele é um cara muito mais de pensar pra agir em vez de reagir (que é mais a energia de toda a Ilíada).
Adorei suas impressões!! Me deu mais vontade de ler toda a Odisseia (só li alguns cantos)
Que odisseia que deve ser a leitura de A Odisseia! Adorei os adjetivos e, a partir de agora, quero ser Gabi ampla-visão, hahahah. Obrigada pela menção, querida Luísa! A gentrificação avança a passos largos por aqui, ameaçando as Lojas com História e o comércio tradicional como um todo, então é mesmo muito importante que mais pessoas conheçam o projeto. Um beijo!