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Entre a magnitude da arquitetura da Avenida Paulista e a delicadeza da comida, voltar à São Paulo foi bom e estranho. Bom e estranhamente familiar, como se eu fosse um avatar de mim mesma do passado, um reencontro a la volta no tempo. Em 2016 escrevi um texto sobre a promessa de metrópole que são paulo oferece, e ainda hoje faz sentido pra mim. Fica essa homenagem à esse retorno, um pouco menos de um ano depois.
Era promessa de metrópole, aquele conjunto de torres beges de dia e cinzas de noite, que aparece nas filmagens aéreas pra justificar congestionamento. Era pra ser denso, abarrotado e amarrotado em cada esquina e em cada janelinha que fica acesa noite adentro. Na metrópole o tempo não existiria, seria irreverente, e o que poderia acontecer à noite acontece de dia e vice-versa. Do alto da janela, é metrópole, admito. É horizonte e mar de asfalto. Posso ficar horas olhando a metrópole da janela, vendo bege virar céu rosa e azul e noite, mas aí não vejo gente, e a metrópole é só pintura. Descendo então do prédio na Bela Vista, longe da janela da parede, do elevador, da grade e da outra grade chegando finalmente na rua, não era mais promessa, e a metrópole se descortina incoerente.
Casinhas? Casinhas coloridas muito antigas ou nem tanto, na borda do Bixiga, a Alameda Ribeirão Preto é interior. Esquina, mercadinho, barzinho, é o senhorzinho que ainda costura, é quem te conhece pelo nome. Mas a vista da janela era promessa, e a Paulista deixa suas torres e antenas à mostra, chamando e prometendo. Pra chegar, há de se enfrentar as ladeiras íngremes que exigem postura reta e pulmões cheios; rumo à Paulista, sem ar e sem expectativa nem o mais atlético pedestre chega. Pra honrar a chegada na avenida é preciso perder o fôlego, e, se a empreitada for bem-sucedida, te recebem com banda e tudo. A Paulista era o coração da promessa de metrópole, mas erraram nos edifícios, esquisitos, uma pena. Competem entre si exemplares de janelas sem graças, formatos aleatórios, casarões perdidos e conjuntos horripilantes de vidros espelhados. A exceção, talvez, será o Pauliceia, que é azul, nada mais.
Veja, na Paulista, nem o céu é azul, está sempre vermelho nos inícios de noite em que me atrevo a olhar pra cima na rua que obrigatoriamente se olha pra frente. Um barzinho resiste ao status de Avenida, como conseguiu escapar da especulação gourmetizadora que alcançou os mais humildes quibes de boteco eu realmente eu não sei. Com mesas na calçada e mais pessoas do que elas podem acomodar a gente toda toma cerveja e faz volume em frente dos prédios esquisitos. A Paulista só é metrópole na horizontal, onde há gente, mesmo que essa gente vá sempre em cima de sapatos fechados e casacos fechados. Agora, que não preciso correr, vou de chinelo no pé pra tentar sentir a metrópole na poeira.
A promessa erra também no comprimento, te dizem grande, vá lá, monumento, mas três respiros, três passadas e algumas bandas bastam pra chegar na Consolação. De nada consola entrar na estação de metrô mais claustrofóbica da cidade, mas o que a Paulista tem de calçada a Consolação tem de estreita, de cemitério e dispenso a sensação de quase ser atropelada e já ter onde ficar. Com um pouco de sucesso pedestre no subterrâneo, saio à rua e chego ao centro. Anoitece e a luz do dia se despede levando a metrópole da praça da República, que talvez nunca tenha sido, do edifício Itália e do Copan, que foi mesmo, mas está de reforma. Antes de me contentar com a promessa, encontro a Metrópole assim com maiúscula, no nome da galeria. Com direito a térreo e jardim, e chope e gente e varanda o prédio era Metrópole em 1960 e quer ser ainda hoje, visto das janelas em volta ou dos olhos de quem passa e para na banca de jornal logo aliem frente.
Uma ótima viagem a todos! :)
:Dicas a bordo:
~ Os Roy não andam por Nova York: esse texto imperdível da Luísa Manske, espia só:
“Não é preciso ser bilionário para isso: dadas as devidas proporções, todos podemos citar pessoas que parecem ter se descolado da realidade em montanhas de dinheiro e poder que não são capazes de lhes trazer aquilo que mais querem, aquilo que o dinheiro não tem como comprar. E os Roy - principalmente os filhos, que já nasceram com essa riqueza - confirmam essa teoria: mesmo tendo absolutamente tudo, algo de muito primordial sempre lhes falta”.
~A melhor fotógrafa de rua e sua história de anonimato
~ O chocolate belga é brasileiro;
~ O Ministério da Cultura abriu o maior edital de premiação de literatura feita por mulheres;
~Essa entrevista da Sally Rooney;
Até a próxima!
Luísa
Ah, muito obrigada pela citação nos links Luísa! Adorei o seu texto <3
"Vou de chinelo no pé pra tentar sentir a metrópole na poeira" ❤️