“Tamas e Julio diziam que, apesar de o consórcio conter três firmas, cada qual se responsabilizaria por um campo definido, e sob a Promon ficariam a responsabilidade e a autoria do projeto da estação. Ponderei, dizendo que a autoria arquitetônica deveria ser minha, se era eu que ia fazer o projeto. A arquitetura, afinal, tem sempre um autor, cujo trabalho é a base de uma equipe toda”.
(Fragelli, Marcelo, “Quarenta anos de prancheta”, página 308").
Marcello Fragelli (1928-2014) foi o arquiteto responsável pelos primeiros projetos do metrô de São Paulo, que eu estudei nas minhas pesquisas de Mestrado e Doutorado*. Ele foi contratado por um consórcio de empresas de engenharia e encampou uma verdadeira missão para produzir arquitetura em um contexto que considerava que ele deveria apenas produzir fachadas (sim, faz tempo que as pessoas não sabem o que os arquitetos fazem).
Ele brigou por melhores fluxos de entrada e saída dos passageiros dos trens, melhores disposição de escadas, otimização da estrutura. Explorou aspectos cavernosos do subterrâneo, ao mesmo tempo em que abriu a entrada de luz natural, incluiu jardins, desenhou praças. No fim de sua vida, escreveu um livro lindo chamado “Quarenta anos de prancheta”** em que conta suas experiências de vida em primeira pessoa, coisa rara. Em um parágrafo que quase passa desapercebido, ele coloca sua vontade de ter a sua autoria dos projetos bem demarcada. Diz que “empresa” não pode ser autora de nada. Destaca, por fim, que a obra tem sempre um “autor, cujo trabalho é a base de uma equipe toda”.
Ele reconhecia o papel da equipe e sempre citou o nome completo dos arquitetos que liderou, apesar de ser de uma época de arquitetos “gênios criadores”, que reflete uma percepção da profissão que não cabe mais (escrevi um pouco sobre essa questão aqui). Fragelli escreve longos relatos sobre o processo de projetos, as negociações com engenheiros e prefeitos, as decisões projetuais e de obra. Se nos livros de história os autores de projeto são quase sempre indivíduos, nos últimos anos, inúmeros escritórios de arquitetura passaram a ser reconhecidos por sociedades coletivas, em duplas, trios, ou mesmo grupos. O prêmio Pritzker (correspondente ao Nobel da arquitetura) reconheceu, apenas em 2020, que duas pessoas poderiam receber o prêmio - as irlandesas Yvonne Farrell e Shelley McNamara.
Como arquitetura não é arte***, Fragelli não se referia apenas ao reconhecimento da criação por parte de uma pessoa, mas também de sua responsabilidade técnica. São pessoas que respondem por lei pelos aspectos arquitetônicos de uma construção, seja ela edifício, praça ou estação de metrô.
Mas essa história não é bem sobre isso. Essa história é sobre como esse imaginário coletivo do gênio-criador-autor-do-projeto-da-ideia rapidamente se converte em uma pessoa manipulando uma forma estranha e “criando”, no passo seguinte, um “edifício”.
Na minha época de faculdade circulava um documentário famoso do Frank Gehry (aquele do Guggenheim de Bilbao) sentado ao lado de um estagiário mexendo em uma maquete, daí ele para, aponta o dedo e diz “dobra”. E coisas assim. Imagina você.
E daí que nessa estranha relação de escala é fácil se perder e achar que o edifício é como uma escultura e que desenvolver projeto é encontrar cantos estranhos que precisam de mais de um dobradura. E daí como sempre pode ficar mais estranho, passo seguinte é o/a arquiteto/a entender que é o “dono do projeto”. O antigo embate entre arquiteta/o e cliente, gosto pessoal X gosto do “artista”, escolhas projetuais e o fato de quem de fato vai ocupar os espaços projetados a pessoa que está contratando o arquiteto.
Em sala de aula, me surpreendi com a quantidade de vezes que alunes diziam coisas tipo “eu mexi na minha forma” que logo descamba para “meu térreo”, “minha escada”, “meu piso”. Imagina alguém apresentar algo pra um cliente e dizer “aqui é como estou propondo a ‘minha entrada’”. Mas o vício de linguagem acontece porque ancoramos autoria à propriedade. Como se fizéssemos design de produto, escultura ou qualquer outra criação que primeiro é elaborada pelo autor e depois comercializada, colocada no mundo. Quando, em 90% dos trabalhos de arquitetura e urbanismo, é o contrário. São os clientes que dizem o que precisam, são os parâmetros urbanísticos que dizem a altura e os afastamentos que um edifício pode ter, são os empreendedores imobiliários que dizem que precisam ter o maior aproveitamento construtivo possível do terreno. É a dinâmica capitalista que diz do uso da terra, e é do arquiteto e urbanista lutar para que sua ocupação seja a mais humana, democrática, sustentável, útil e bonita possível. A muitas mãos, com a participação do cliente, da equipe, da população (em projetos de urbanização, por exemplo) e, claro, das outras profissões colaboradoras.
“Quando o trecho entre as estações Santana e Vila Mariana estava quase pronto, em 1974, a companhia resolveu fazer a inauguração parcial. (…) Na estação Paraíso, ao deixarmos o trem, encontramos grande alvoroço, um grande grupo de autoridades e de jornalistas, centrados no prefeito (…). Procurei encaminhar o nosso grupo para o outro lado, mas Plínio Assmann me viu, pediu licença ao prefeito e veio, em passos rápidos, me procurar. Não queria perder a oportunidade de me cumprimentar e de dizer que todos estavam encantados com a arquitetura das estações. Apesar da pressa, consegui apresentar a equipe que as projetara. Fiquei contentíssimo com aquele gesto. (…)
No dia seguinte saíram grandes reportagens sobre a inauguração, com declarações de figurões. Muito se falou do progresso para a cidade que o novo sistema traria, dos trens moderníssimos e dos métodos sofisticados de construção. Mas nada se falou da arquitetura”.(Fragelli, 2010, pg. 305).
Uma ótima viagem a todos! :)
*Nesses links você pode acessar minhas pesquisas de Mestrado e Doutorado.
*A referência bibliográfica completa do livro de Fragelli é: Fragelli, Marcelo. Quarenta anos de prancheta. São Paulo: Romano Guerra, 2010.
***Arquitetura não e arte, embora contenha aspectos artísticos, assim como não é ciência, embora contenha aspectos científicos.
:Dicas a bordo:
~ Marcelo Ferraz, arquiteto que começou sua carreira com a Lina Bo Bardi (podcast)
~Laurinha Lero e sua hilária reflexão sobre o chatgpt (texto português)
~ Ora tiago explicando porque o cinema não está adotando uma estética tiktok (vídeo)
~ When the thing that was meant to change your life doesn’t change your life (texto inglês)
Até a próxima!
Luísa
Gostei muito da reflexão, Luísa! E adorei os seus temas de pesquisa de mestrado e doutorado <3
Perfeito ♥️