Atrás do Porto tem uma cidade
Foram 8 meses, 15 dias e 3 horas. Brincadeira, não contei as horas. Mas faz um tempo maior do que eu sei medir que eu não volto pra minha cidade-natal, minha família e meu o mar. Então agora em novembro eu vesti a roupa da nasa para atravessar o céu e mergulhar nas férias no fim do ano. O ritmo diminui, o trabalho se assenta, o cheiro do mar invade a cozinha (quisera eu). Em resumo, essa vai ser a última cartinha nova do ano. Na transição para o início do ano que vem alguns de vocês que entraram mais recentemente vão receber algumas das minhas cartinhas preferidas - coisa que eu fiz na virada do ano passado e acho que funcionou.
E, por hoje, faremos uma visita à polêmica Região Portuária do Rio de Janeiro, que foi o maior porto de escravos do mundo, no século XIX, e que guarda camadas e camadas de história. As "memórias subterrâneas" foram tema do mestrado da arquiteta e urbanista e minha amiga Clara Buckley, quem eu entrevistei para essa edição e a próxima edições. Vamos juntos.***
O porto do Rio Janeiro e suas memórias - Entrevista com a arquiteta e urbanista Clara Buckley
O que é o Cais do Valongo e como surgiu o interesse por estudar o porto do Rio?
O Cais do Valongo foi um cais escravagista e mercante construído em 1811 onde o desembarque de africanos escravizados operou legalmente em grande atividade até o princípio da década de 1830. O que presenciamos hoje no local é o Sítio Arqueológico Cais do Valongo, que compreende não só os fragmentos do Cais do Valongo, mas também do Cais da Imperatriz, construído em 1843 para o desembarque da Imperatriz Teresa Cristina de Bourbon, que cobriu por completo o cais preexistente causando seu apagamento. O meu interesse pela zona portuária do Rio de Janeiro se deu ainda em 2012 durante o meu trabalho final de graduação, quando estudei os possíveis impactos do Projeto Porto Maravilha na paisagem urbana da Rua Sacadura Cabral – limite do antigo litoral antes dos grandes aterros feitos para as obras do Porto do Rio no início do século XX. Hoje minha pesquisa no programa de mestrado do PROARQ-UFRJ se volta para esse patrimônio subterrâneo adormecido e os processos que levaram ao seu desaparecimento na paisagem e seu recente desvelamento.
Na sua introdução você menciona que "o subterrâneo neste estudo aparece como algo físico – que está presente, mas nos é vedado vê-lo – mas também uma metáfora para aquilo que é depreciado". De que forma essa presença "invisível" se manifestava na região portuária do Rio?
Acredito que se manifesta de muitas formas. A região portuária do Rio sempre representou um território de disputa, seja no campo da narrativa histórica, seja na desigualdade social que se reflete na sua ocupação. Luiz Antônio Simas diz que “o Rio de Janeiro é uma cidade onde o silêncio grita”. O invisível representa também a resistência das culturas minoritárias e dominadas em oposição a uma memória hegemônica, o desvelamento do Cais do Valongo trouxe à tona debates urgentes a respeito do valor simbólico de um sítio de referência identitária afro-brasileira fundamental à memória da diáspora africana.
Como se deu a redescoberta desse subterrâneo?
A descoberta dos primeiros fragmentos aconteceu “acidentalmente” durante obras do Porto Maravilha de infraestrutura urbana no local, no ano de 2010. Essas obras foram então interrompidas e os trabalhos da equipe de arqueologia tiveram início em janeiro de 2011. O curioso é que se sabia do grande potencial arqueológico que aquela área da Praça Jornal do Comércio tinha, visto que registros históricos – cartográficos e escritos – apontavam que ali figuravam o Cais do Valongo e da Imperatriz. No entanto, nada foi feito no intuito de investigar esses rastros até que tornou-se inevitável, isso ao meu ver diz muito a respeito da forma como tratamos nosso patrimônio.
Qual a dimensão política da memória?
A dimensão política da memória é potente e essencial para que a história não seja construída pelos opressores / vencedores. Hoje, por exemplo, presenciamos a distorção dos fatos ocorridos durante a Ditadura Militar brasileira e a promoção de uma política do esquecimento pós-ditatorial em que foram utilizados meios legais para acobertar os crimes cometidos contra os direitos humanos – tal como as anistias. Se não houver uma memória coletiva estruturada e vigilante, a manipulação dos fatos a serviço dos interesses dominantes acontece e toma conta das narrativas oficiais.
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A parte 2 dessa entrevista você lê aqui
Uma ótima viagem a todos! :)
:Dias a bordo:
~ "Atrás do porto tem uma cidade" - álbum de Rita Lee, lançado em 1974
~ "Um porto no capitalismo global: desvendando a acumulação entrelaçada" - resenha do livro que conta a história do porto do Rio na Revista Quatro Cinco Um, e no site Outras Palavras
~ Esse texto sobre o Museu do Amanhã, de 2016, mas que eu ainda acho pertinente. Do escritor e jornalista João Paulo Cuenca na Folha de São Paulo.
~ Sobre histórias desveladas, a excelente série documental "A história da alimentação no Brasil", disponível na Amazon Prime, trás laços entre a cultura indígena e portuguesa que até hoje marcam nossos pratos
~ Um tigre em um outdoor? Artistas reinventam o uso do espaço público em tempos de confinamento
Até a próxima,
Luísa