![Sean Penn on the Into the Wild Bus Being Removed From the Wild Sean Penn on the Into the Wild Bus Being Removed From the Wild](https://substackcdn.com/image/fetch/w_1456,c_limit,f_auto,q_auto:good,fl_progressive:steep/https%3A%2F%2Fsubstack-post-media.s3.amazonaws.com%2Fpublic%2Fimages%2F7b15d27e-0f74-4890-aab7-0fcc02ad6e8b_2000x1126.jpeg)
A Joutjout topou dar uma entrevista pra alegria dos seus muitos fãs saudosos. Ela contou em um podcast (aliás, bem ruim), que leva uma vida simples, tem uma casa em uma cidade pacata e uma outra casa em uma Chapada, bem mais simples, construída há pouco tempo e que tem só as bases de uma casinha, sem nem banheiro.
A internet foi à loucura dizendo que ela estava romantizando a pobreza, lavando roupa na mão e tomando banho no rio. Que basicamente ela estava vivendo sem saneamento básico apenas para ter uma “experiência” e o quão rico você tem que ser pra sequer começar a formular essa frase.
O programa Roda Viva entrevistou esses dias a Tamara Klink, jovem velejadora e escritora que é filha de Amir Klink, um grande navegador brasileiro conhecido por feitos como cruzar o oceano atlâncito sozinho em um barco à remo (?). O feito mais recente da Tamara foi passar o inverno na Groelândia sozinha - três meses sem ver a luz do sol e com toda a sua sobreviência milimetricamente planejada.
Uma jornalista perguntou o porquê dela se expor a tantos desconfortos, já que cresceu com tantos privilégios. Tamara deu uma resposta que eu achei até muito boa, comentando alguns dos muitos aprendizados que ela teria com isso, como consertar o barco, fazer sutura, pescar, estar sozinha e etc.
Muita gente na internet criticou a Joutjout por falar de maneira tão discipliscente sobre o trabalho que é a manutenção da vida cotidiana, quase como se fosse razoável viver sem saneamento básico. Eu fiquei surpresa com a confusão que esse tema gerou. Cabe lembrar, por exemplo, que “saneamento básico” é um sistema de infraestrutura urbana, que “compreende os serviços de abastecimento de água; coleta e tratamento de esgotos; limpeza urbana, coleta e destinação do lixo; e drenagem e manejo da água das chuvas”. Então assim, não tem mesmo saneamento básico em um terreno-sítio-no meio de uma chapada brasileira. Mas tudo bem, ela poderia ter um banheiro, nem que fosse com uma infra mais simples.
E aí eu acho que tem uma confusão muito grande quando, ao discutir pobreza e riqueza, as pessoas acham que estão falando de uma mesma coisa - escolhas -, quando existe uma diferença brutal entre desconforto e violência. Uma pessoa que, por exemplo, mora em uma favela de uma metrópole brasileira, sem saneamento básico, que acorda às 3h da manhã pra pegar um transporte público sem ar-condicionado, sem lugar pra sentar, pra cruzar a cidade e trabalhar na única região que tem trabalho - essa pessoa não está vivenciando “desconforto”. Está vivenciando uma violência estatal. De um estado neoliberal em que vivemos, que não constrói lugar para as pessoas morarem - apesar de moradia e mobilidade urbana serem direitos garantidos pela constituição brasileira-, que deixa à revelia de um mercado financeiro a produção do espaço urbano.
A pessoa que quer ter um maior contato com a natureza, que quer estar perto de árvores, tomar banho de rio, aprender a pescar, dormir em um barco, refletir sobre sua existência e cuidar de si pode até ter menos conforto que você que me lê, mas ela fez isso porque quis e, mais importante ainda, pode sair dessa situação quando quiser.
Uma outra jornalista perguntou se a Tamara teve notícias sobre as enchentes do Rio Grande do Sul, que aconteceram na mesma época em que ela estava na Groelândia. Ela respondeu que sim soube e que ficou surpresa de pensar que, naquela circunstância, estava mais segura que uma pessoa morando em Porto Alegre. Sim, porque apesar do desconforto, Tamara tinha cama, teto, roupas de frio, comida, celular pra fazer chamadas e preparo psicológico. Ela escolheu viver aquilo e tinha data pra acabar. Ela estava segura.
Ainda assim, paira no ar se a pergunta não era “o quão rico você tem que ser, pra escolher o desconforto só pra viver essa experiência?” A gente nem sabe, foge da nossa imaginação. A invisibilidade dos ricos, cirurgicamente descrita nesse post abaixo (leiam todos os cards), me faz pensar que estamos distantes de ver a maneira como o sistema capitalista concentra oportunidades, recursos, confortos, subjetividades, imaginários e narrativas.
Então, vamos organizar: de um lado, temos as pessoas que vivenciaram a violência que é a ausência de direitos, jamais quererem voltar a viver qualquer desconforto sem necessidade. De outro, temos pessoas que sim tiveram seus direitos respeitados, que não tiveram essa vivência, que não valorizam o luxo e que decidem viver coisas diferentes porque há outros aprendizados ali. E há pessoas que são tão ricas que perderam contato com a realidade e se colocam em situações estapafúrdias e de risco, como o caso daquelas pessoas do submarino que implodiu.
Tamara Klink começou a faculdade de Arquitetura e Urbanismo na USP, em São Paulo, e terminou na França, e é claro que eu fiquei chateada de nenhum jornalista se interessar em saber no que essa formação contribuiu para suas expedições. Fica aqui a lembrança o curso de Arquitetura e Urbanismo ensina construção, materiais, planejamento, meio-ambiente, infraestrutura, conforto ambiental (sim, isso é uma disciplina) e etc. Nenhuma pergunta.
A única coisa que poderia colocar a Tamara em risco era cair no gelo, pois o frio poderia colocá-la em hipotermia muito rápido. Ela caiu. Ela saiu. Ela foi no Roda Viva contar. Ela virou uma heroina e está escrevendo um livro sobre isso. Eu gostaria de ler e eu respeito quem se envolve por essas histórias. Mas herói, herói mesmo, pra mim, tá mais pra gente que faz algo pelo mundo.
Eu tenho muita dificuldade em admirar pessoas que se colocam em situações limites só pra viver a adrenalina. Me julguem. Mais ou menos ricos, mais ou menos hippies, mais ou menos doidos, mais ou menos idealistas. Apesar disso eu vi todos esses filmes - na Netflix tem documentários de todas essas pessoas. A mulher que resolve nadar o mar do caribe sem proteção contra tubarões (?). A mulher que decide mergulhar no mar sem oxigênio (??). A mulher que decide mergulhar, sem oxigênio, no GELO (???). Tem o cara que escala montanhas sem cordas de proteção (?). Tem o cara que escala montanhas, sem proteção, CORRENDO (??????). Me digam se esqueci de algum. Eu assisto, mas sofro. Fico pensando na crise psicológica que essa pessoa experiencia pra fazer algo assim, e, ao mesmo tempo, no quão aleatória é a nossa experiência na terra e que podemos sim fazer o que dá na telha só porque sim.
Uma ótima viagem a todos! :)
: Dicas a bordo :
~ Uma mulher que morou dois anos em cima de uma árvore, pra explodir todo esse debate - uma história imperdível da Carol Bensimon
~ Melhor ainda que a Joutjout é a Carla Soares do falando sobre a vida no campo
~ Descobri a ótima newsletter de arquitetura do Gabriel Fernandes e adorei ler a polêmica sobre o que deve ser considerado patrimônio histórico
~ A da Galáxia encontrou uma lista de livrarias especializadas que é chocante <3
~ “And if I'm flying solo, at least I'm flying free”: vá ver Wicked <3
Até a próxima!
Luísa
eu acho muito irônico que ~a internet~ tenha opiniões fortes sobre joutjout ter decidido viver uma vida em paz longe da internet (de saneamento básico também, mas principalmente da internet). quer dizer, certa ela.
mas, eu também acho que atualmente poder escolher viver em uma paz sem notícias, sem conexão em tempo real também está atrelado a riqueza. é preciso ser muito rico pra poder não ter um celular. não precisar receber mensagens de empregador. ou até não ter que acessar um aplicativo que garanta à pessoa algum benefício social ao qual ela tem direito.
Eu acho que a gente está se enganando, de verdade. Acho que apontar pra esses casos e gritar: "olha que ricoooooo!! só rico pode fazer isso!!" parte de um lugar de sofrimento emocional real. Não são só os ricos que podem viver com menos consumo, menos celular, menos redes sociais, menos dependência nesse rolamento de feed eterno a que todos parecemos estar condenados. Mas, ainda assim, continuamos presos na roda.
Sim, abandonar de vez hoje é um privilégio. Mas abandonar de vez não é a única opção pra viver melhor nesse mundo louco. O sistema foi construído para nos cercar e nos fazer de ativos de um mercado da atenção comandado por bilionários do qual poucos de nós podem escapar. Mas tem muito que poderíamos fazer no meio do caminho, mas simplesmente preferimos não lidar com nenhum desconforto, preferimos nos manter nesse estado maluco de nervosismo eterno em que ninguém consegue mais esperar uma comida chegar no restaurante sem ficar rodando o feed e respondendo mensagem. No fim das contas preferimos comprar todas as possibilidades de fuga do desconforto interno que nos são oferecidas e depois gritar que tem que ser muito rico pra abrir mão de tudo.