Sotaque é sinal de coragem
Como eu morei fora do Brasil em duas ocasiões diferentes, ouvi a muito a pergunta sobre se eu moraria fora "pra sempre" (como se alguém pudesse responder isso hahah). Mas uma questão que sempre me trouxe curiosidade era sobre a decisão de um estrangeiro de trazer a vida pra cá. Pra um povo com certa síndrome de vira-lata, pode ser uma surpresa pra nós brasileires o encanto gente de fora vê com a vida cotidiana daqui para além do carnaval que passa na televisão. Eu mesma topei com muito franceses muito interessados nas favelas enquanto faziam intercâmbios por aqui, por exemplo. A entrevista de hoje é com um amigo muito querido que eu também conheci quando ele estudou por um período na faculdade em que fiz graduação, a UFF. Ele tinha vindo de Portugal e gostou tanto que guando se formou voltou pro Rio, mas hoje mora em São Paulo. Eu achei que essa conversa com ele poderia refrescar nossas ideias sobre viver em cidades e lugares diferentes, mas a verdade é que os relatos dele me emocionaram. Obrigada demais, João, por compartilhar suas impressões comigo/conosco!
Entrevista com o arquiteto português João Paulo de Matos:
1. Você cresceu em uma cidade pequena de Portugal, certo? Como foi crescer nessa cidade e que diferenças te chamaram a atenção quando você foi pra uma cidade maior fazer faculdade?
Sim. Cresci numa vila chamada Caminha, no Noroeste Português, na fronteira com a Galiza, uma região de Espanha. Foi um processo curioso, porque eu nasci em Lisboa, cidade grande, e fui para Caminha com 10 anos. Já com essa idade senti o "choque de velocidades", mas pela proximidade com a Espanha fui percebendo mais claramente que havia mais mundo.
Colocando em perspectiva, com 10 anos, eu percebi que havia colegas meus que ordenhavam gado às 6 da manhã antes de ir para a escola (pública) e isso era novo para mim e não existiam centros comerciais ao fim de semana. Também existia uma questão com o idioma e a informação porque, como o sinal de TV espanhol era mais forte que o português, as crianças assistiam desenhos animados em espanhol e os adultos sabiam mais facilmente o que se passavam em Madrid do que o que se passava em Lisboa. Da mesma forma, existiam no léxico do dia a dia expressões galegas/ espanholas que tive de aprender. Com o passar dos anos, aprender a adquiri um gosto fantástico pela natureza, pela ancestralidade das coisas (nos lugares pequenos isso tem uma grande importância), mas percebes também que lá é pequeno e que se queres algo mais tens de... navegar... e lá fui eu... para Coimbra, Porto, Rio de Janeiro, etc.
Resumindo e concluindo, quando voltas à cidade grande, sozinho, é a abertura e a opressão tudo ao mesmo tempo, na medida em que o espaço para seres quem bem quiseres é claro mas ao mesmo tempo, a frieza e a competição são complicadas de compreender. Tens de aprender a lidar com isso.
Os lugares pequenos, rurais, naturais, nos dão o outro lado, talvez mais puro, uma ambivalência ao cosmopolitismo da cidade grande.
Hoje, vivo na cidade grande, vivo em São Paulo na selva de pedra e não sei se saberia viver aqui se não tivesse vivido em Caminha, se não tivesse aprendido as coisas pequenas das cidades pequenas. Viver nessas duas realidades me ajudou ser mais completo como humano e como arquiteto.
2. Como surgiu a ideia de fazer intercâmbio no Brasil?
Sempre tive curiosidade por conhecer melhor o Brasil. Tenho muita família no Rio de Janeiro de que sou muito próximo.
Na época, tinha a possibilidade de fazer no Brasil ou na Escócia, acabei por escolher o Brasil porque na época entendi que seria uma experiência mais contrastante. Não me arrependi.
3. Quais foram suas primeiras impressões do Rio de Janeiro e de Niterói?!
Eu cheguei ao Rio à noite. Quando chegas à noite em um lugar não tens grande parâmetro então tive de aguardar o outro dia, na Urca onde fiquei morando, para tirar as primeiras impressões.
No outro dia, acordei bem cedo (o fuso horário ajuda) e fui na orla. Acho que não existe melhor forma de ter uma primeira impressão com o Rio e paradoxalmente estava Niterói lá ao fundo fazendo parte de tudo isso com o MAC lá ao fundo, desenhando a linha da cidade. A primeira impressão foi de deslumbramento total.
Depois, no dia a dia, percebemos uma sociedade de extremos ora estás numa situação muito descontraída ou num situação muito tensa. Isso vale para o Rio e para Niterói.
4. Enquanto você estava no intercâmbio no Rio, do que sentia mais falta das cidades portuguesas (e da sua vida lá, em geral)?
No intercâmbio eu não senti muita falta. O intercâmbio não é um bom parâmetro porque estás aberto ao novo. Mesmo que lá no fundo eu sentisse que a minha faculdade em Portugal tinha mais condições estruturais (os professores da UFF são incríveis) e que as cidades lá, de um modo geral, funcionam melhor, eu estava aberto a entender a forma de estar aqui com as coisas boas e as coisas ruins.
Curiosamente, sinto mais falta hoje na condição de emigrante. E faço essa comparação não só entre Rio e Portugal mas com São Paulo também. De um modo geral, o que sinto mais falta é de ter uma cidade única. Aqui e usando o Rio como exemplo temos a cidade da zona Norte/Oeste a qual eu conheço mal mas que sei que é perigosa, mal organizada e difícil de chegar e depois temos a cidade da Zona Sul que eu conheço porque corresponde aos padrões mínimos dignos que cada ser humano, no seu direito à cidade, deveria ter. Essa unidade de segurança, de habitação e de qualidade urbana é o que sinto mais falta.
A segunda parte dessa entrevista você lê aqui
Uma ótima viagem a todos! :)
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Até a próxima,
Luísa