“Por onde começar? Comece com o material. A questão do corpo. Adrienne Rich lista as particularidades de seu corpo - cicatrizes, gravides, artrite, pele branca, sem estupros, sem abortos - como um lembrete de como seu corpo a mantém fundada em seu próprio ponto de vista, o que lhe permite sobre o que falar e escrever. O que meu corpo me permite falar e escrever? eu poderia começar com meu corpo antes grávido, suando e nauseado em um trem indo para o Norte de Londres. Poderia começar com meus ombros cansados e doendo por ter que empurrar um carrinho de bebê pelas ruas de Toronto tomadas de neve. Poderia começar com meus pés, descalçando feliz os meus sapatos quentinhos, pisando na grama fria do High Park, onde eu me deito enquanto as pessoas ficam olhando. Este ponto de encontro de corpos e cidades está no centro de “fazer perguntas feministas” e pensar sobre a “cidade feminista”. - trecho de “Cidade feminista: a luta pelo espaço em um mundo desenhado por homens”.
Semana passada foi meu aniversário e eu ganhei de presente esse livro precioso da geógrafa canadense Leslie Kern. Eu o ganhei de uma amiga, enquanto visitava a exposição dos gêmeos Gustavo e Otávio Pandolfo na Pinacoteca de São Paulo. Os gêmeos idênticos cresceram muito juntos e criaram para si um universo nas artes visuais que os projetaram para o mundo. A minha amiga que me deu esse livro também é gêmea e tanto ela quanto sua irmã seguiram carreiras da saúde. Um pouco por coincidência, um pouco não, durante a exposição, nos perguntamos quantos irmãos gêmeos que conhecemos seguiram carreiras parecidas, e o que poderia ter acontecido no meu caso, que tenho um irmão gêmeo advogado, enquanto eu sou arquiteta. Na mesma hora minha amiga destacou a questão do gênero, já que está mais do que estudado e documentado o quanto a sociedade socializa de forma diferente meninos e meninas e que talvez isso nos tenha afetado de alguma forma.
No mesmo dia eu comecei a ler o livro e essa provocação da professora Kern me deixou inquieta. A que caminhos a minha experiência corporal e de gênero me levou, na cidade? Tendo morado sempre meio longe de tudo, desde muito pequena eu já circulava distâncias muito grandes de carro com minha família no dia-a-dia, e herdei da minha mãe o chato “motion sickness”, leia-se: enjoo em movimento. Passei então minha infância entrando no carro já deitando (claro, veja, eu cabia deitada no banco de trás, com a cabeça no colo do meu irmão e as pernas encolhidas) e viajando pela cidade vendo basicamente o céu e alguns prédios. Eu me lembro do dia (mas não do ano) em que tive vergonha de não conhecer a ordem dos bairros da cidade em que morava então decidi comprar um mapa e decorar: Centro, Lapa, Glória, Flamengo, Botafogo, Urca, Praia Vermelha (“bolo e guaraná, suco de caju, goiabada para a sobremesa!”), Copacabana, Ipanema, Leblon, Gávea, São Conrado, Barra da Tijuca e acho que parei por aí.
Eu cresci até 1,68m, o que fez com que rapidamente eu não coubesse mais deitada no banco de trás dos carros, mas que alcançasse a barra do ponto de ônibus, coisa que não era possível pra muitas das minhas amigas. Com 1,68m eu me toquei ser uma mulher alta para os padrões brasileiros, e me sentir mais alta do que a maioria das pessoas que eu conhecia (coisa que eu gosto até hoje) me fazia pensar muito no que era a experiência da minha mãe, que tem 1,56m e usou salto alto toda a sua vida, até em casa, até o dia que caiu, quebrou o pulso e não usou mais, e olha que isso só aconteceu depois dos seus 50 anos. Ela teve que passar a usar sapatos baixos, coisa que a incomodava muito. Ela era tão habituada aos saltos que muita gente nem sabia o quanto ela era baixinha. A minha mãe não enxerga direito, fato pouco comentado mas um grande condicionante da vida urbana. Com um pouco de miopia quando adolescente (e me recusando a usar óculos em público, porque, claro, era feio, e quem quer ser feia?) eu peguei muitos ônibus errados e contei com a ajuda de muitos motoristas e trocadores anjos da guarda que me ajudaram a seguir o caminho que eu buscava.
Como a minha mãe, eu também não gostava dos sapatos baixos feitos para mulheres: eles machucavam os calcanhares até sangrar e eu nunca vi um amigo meu na faculdade mancando por causa do tênis ou tendo que pausar o trajeto pra comprar micropore na farmácia. Eu sempre morei longe de tudo, andava muito pela cidade e achava tênis uma coisa horrorosa - então basicamente passei muitos anos colecionando micropores, band-aids e demais cacarecos e artefatos que me permitissem passar o dia fora com tranquilidade pra carregar o meu peso e todos os livros e materiais que a faculdade de arquitetura me exigia.
“Partir do meu próprio corpo e das minhas próprias experiências significa partir de um espaço bastante privilegiado. Como mulher branca, cis e saudável, sei que, na maioria dos casos, tenho o tipo de corpo certo para me fazer deslocar na cidade moderna pós-industrial, de lazer e de consumo.
Meu corpo também pode significar perigo ou exclusão para pessoas de cor, negros, pessoas trans, pessoas com deficiência, povos indígenas e outros para quem os espaços dominados pela brancura e corpos normativos não são acolhedores.
(…) Esse privilégio corporificado não nega os medos e exclusões de gênero em minha vida. Em vez disso, os privilégios que tenho se cruzam e informam minhas experiências como mulher.
Leslie Kern é muito sensata ao registrar os contornos que sua expressão corporal escreve na sociedade em que ela vive, como uma mulher branca e saudável do norte global. As coisas não vividas também fazem parte nuclear da nossa experiência urbana. Como Kern, eu também nunca o olhar racista que atravessa a rua ao ver um corpo negro. Ao contrário, eu poderia dizer que eu sou tão branca e rosa que a minha restrição vinha dos amigos que queriam pegar sol na praia ao meio dia e como eu só podia estar ali com mil camadas de tecido, sombra e protetor solar, parecendo isso mesmo, um et. Mas um et que é bem vindo. Assim como Kern, eu sempre pude entrar em qualquer restaurante em qualquer horário do dia sem consumir e usar o banheiro. Sempre pude perguntar as horas e as direções a quem quer que fosse, e tomar consciência disso não mudou minha presença corporal, mas certamente mudou minha percepção da cidade.
Uma ótima viagem a todos! :)
:Dicas a bordo:
~“Os gêmeos: segredos” - uma série no youtube da Pinacoteca sobre esses artistas super urbanos
~ Sobre deficiências e habilidades em personagens históricas: esse vídeo muito interessante da socióloga Sabrina Fernandes
~ “O trabalho de cuidado: uma forma de pensar cidades” e “Todo dia ela faz tudo sempre igual”: duas edições dessa newsletter em que a quarentena me inspirou a pensar o lugar das mulheres nas cidades e no urbanismo
~ Só cresce o meu amor pelos podcasts narrativos e o quanto eles tem ganhado espaço aqui no Brasil: “Os Sertões” é uma produção primorosa de 5 episódios que contam a história de Canudos e o livro que a registrou
~ “Bienal, 70 anos” é outra produção de série em áudio, narrada pela Marina Person, que conta a história da Bienal de Arte de São Paulo, em 10 episódios
~ O meu “Trocando de bikini sem parar”: peguei o link do vídeo do Tim Maia e me dei conta de que a música diz “tomo guaraná” e não “bolo e guaraná”.
Até a próxima!
Luísa