1. Deserto
“À arte rupestre se soma a peculiaridade geográfica do lugar. A região era um fundo de mar, mas há cerca de 220 milhões de anos um imenso movimento tectônico arremessou para o Ceará toda a água viva que havia ali. O material sólido - dos mais grossos, como rochas, aos mais finos, como areia -, arrancado e desagregado, transportado ao acaso pelo vento e pela chuva, se tornou montanhas de curvas fluidas e sinuosas, assim como cânions profundos, a lembrar a obra do arquiteto catalão Antonio Gaudí.
A paisagem daquele pedaço do sertão foi formada muito antes da humanidade surgir na terra. Perto dessa potência geológica, somos pó, um cisco, um caquinho, um nada. Aos poucos, sob o céu desanuviado, sentada no topo das rochas mais altas, matéria mineral sólida, dura, Niéde passou a contemplar a imensidão, em silêncio”.
Estou viajando com Niéde Guidon, a arqueóloga franco-brasileira que lutou pela preservação e divulgação do Parque Nacional Serra da Capivara. O clima árido, que eu associo à paisagens desérticas, rochas infinitas, vem acompanhado por toda uma população que é transformada pela consolidação do parque. Um tanto de meninas batizadas de Niéde, à sua homenagem. O livro tem algumas imagens, mas, até chegar nelas, viajo de olhos fechados, no espaço e também no tempo, imaginando uma pesquisadora nos anos 1970 tentando angariar fundos para revelar pinturas rupestres nas profundezas do Brasil. Perto dessa potência geológica, somos pó, um cisco, um caquinho, um nada. Um pouco de perspectiva refresca qualquer ansiedade cotidiana. São como as experiências que são do clima e do corpo, dos extremos. Coincidentemente ou não, várias delas vem aparecendo pra mim recentemente.
2. Calor
“Ontem foi a 1ª segunda-feira de agosto e Barcelona, que já vinha parando, praticamente parou. É verão, está quente, as crianças estão de férias, está muito quente, a cidade está lotada de turistas e está muito quente.
Nosso bairro, Gracia, está vazio e quem ficou por aqui vive a vida bem devagar. Os lugares que normalmente já têm poucos atendentes agora têm menos ainda e alguns horários de funcionamento não chegam nem na hora da siesta - como uma das padarias que abre as 8h e agora fecha às 12:30”.
Eu achei a maior graça desse post da
sobre o calor. Sempre fico admirada com a forma como certos países da Europa lidam com temperaturas extremas (tô falando das tradicionais, não das últimas calamidades que rolaram em função do aquecimento global). Como elas são a exceção ao longo do ano, é parte da cultura de trabalho desses lugares, contorná-las. Não sei bem se é uma resistência ao capitalismo de países que tem uma história diferente, mas é ao menos mais humanizado. Como quando ninguém sabe porque ainda se exige terno dos homens no verão carioca, sabe?!O Rio de Janeiro vem apresentando temperaturas diferentes. Ano passado choveu durante o segundo semestre todo, esse inverno já bateu temperaturas quentes e abafadas e o verão pesado durou pouco. Mas nos idos de 2014 houve uma noite em que fui beber no Arco do Teles. Eu adoro esse trechinho de centro antigo ali na Praça XV. Era final de dezembro, alto verão, fim do dia, naquele esquema de zero amplitude térmica: 40º na hora do almoço, 40º na hora do happy hour. Se você, como eu, passava seu dia fora de casa, era difícil estar muitas horas com a sensação de limpeza no corpo. A umidade era muito alta e o suor fazia companhia sempre. Do Arco do Teles, as barcas eram a melhor opção para voltar para Niterói. Eu paguei a conta, atravessei a praça xv, entrei na embarcação e cometi o erro de sentar no bloco de cadeiras do meio, longe de alguma possível brisa na janela. Mas achei que, naquele ponto, não fazia mais sentido lutar contra o calor. Eu suava tanto, mas tanto, que parecia que estava voltando pra casa nadando na Baía de Guanabara.
3. Mar
A premissa parece ficcional: uma mulher consegue ficar sem respirar com tanta facilidade, que resolveu tornar a coisa mais difícil ao fazer isso debaixo d’água. E, depois, mergulhando bem fundo no mar. Ela escolheu ignorar as tecnologias existentes que poderiam garantir-lhe conforto, ou mesmo mais chances de sobrevivência. Tubos de oxigênio, pés-de-pato, roupas térmicas, nada. Mas o filme é um documentário, e você fica seduzido pela densidade do azul, pelo brilho das ondas, a filmagem é a coisa mais linda, a produção é bonita, eu me seduzi e no fim desliguei a netflix com um misto de raiva e fascínio: indignada com a sensação de desprezo pela vida que mostra o “esporte” mais perigoso dentre os esportes perigosos, e embriagada pela melhor sensação do mundo, que é a de mergulhar no mar. Imersão, entrega, silêncio, frio, tato, presença, azul, infinito azul.
Uma ótima viagem a todos! :)
:Dicas a bordo:
~ Dez exposições de arte no Brasil - com destaque para estados fora do circuito Rio-SP;
~ Viajar sem mala vai ser o futuro?
~ Cores na parede e no prato - essa viagem gostosa da
~ A Guiné de Josué - essa viagem gostosa do
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Até a próxima!
Luísa
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Quando visitei o Chile fiquei bem surpresa com a relação deles com os horários de trabalho também. A cidade só começa a funcionar depois das 10h, saí de casa 8h30 e as ruas estavam muito vazias e em alguns comércios também se respeitava a hora da siesta, assim como em Buenos aires e no Uruguai. Creio que não seja tão forte como Espanha, mas é interessante os países vizinhos manterem esse aspecto. Lembro dos livros do Gabo também, onde ele sempre mencionava a siesta. :)
Ah, que bacana! Tmb adoro observar como a cultura lá é tão diferente. Definitivamente, em Barcelona, trabalha-se menos do que em muitos lugares (o que eu tenho achado ótimo)