Se você ainda não conhece o projeto “Comida saudável pra todos”, da jornalista Juliana Gomes, eu recomendo que você conheça. Além de fazer um trabalho muito importante de divulgação científica em prol da alimentação digna para todos, ela escreve uma publicação mensal para apoiadores, o que faz com que eu não possa compartilhar os texto aqui. Mas em fevereiro ela escreveu sobre os vizinhos da rua dela e desde então essa questão não sai da minha cabeça. A maioria das pessoas que eu conheço que cresceu em uma cidade pequena odeia a verve fofoqueira da vizinhança e ama o anonimato da cidade grande, mas a maioria dos meus amigos da cidade grande sonha envelhecer numa vila no campo com todos os seus amigos. Há um paradoxo aí, a gente quer morar perto de gente conhecida, mas só da gente conhecida legal.
Eu tive experiências diferentes com vizinhos, mas nunca uma comunidade que se relacionava, uma “vizinhança”. Na rua em que passei minha infância, meu irmão fez amizade com uns meninos bem legais, nossos amigos até hoje. Mas as minhas amigas mesmo moravam no bairro vizinho que, pela incrível urbanização rodoviarista do local, não dava pra ir a pé. A escola ficava ainda mais longe, então qualquer encontro com amigas precisava ser marcado, eu precisava saber se deveria levar tênis, roupa de piscina, preparar a bolsa e etc., nada muito espontâneo. É do que eu sinto mais falta, da espontaneidade. Quando fiz intercâmbios, a vizinhança de migrantes era uma comunidade mais divertida que a do bairro propriamente dita, mas, nas casas em que morei nas metrópoles brasileiras, mal sabia a cara dos vizinhos de porta.
Esse não é um problema arquitetônico, mas sim capitalista. Aquela estrutura econômica baseada na desigualdade socioespacial que prega um modelo de sucesso excludente e privatizado. Não há projeto urbano que dê conta de pessoas que não querem se relacionar com o diferente e que encaram o outro, o próximo, como ameaça em potencial. No maior experimento urbano moderno do mundo, Brasília, Lucio Costa imaginou uma “unidade de vizinhança”. Baseado em décadas de explorações de como uma cidade poderia ser mais amigável, salubre, bonita e arborizada, a proposta era que em uma “superquadra” você pudesse conviver com seus vizinhos mais próximos em áreas livres e alcançar a pé os principais serviços cotidianos de uma vida urbana: creche, farmácia, mercadinho e por aí vai. Ajudar com a crianças, trocar comidas e afetos, festividades de bairro e compartilhar conflitos: nada disso vai funcionar enquanto a desigualdade que assola nossas cidades andar de mãos dadas com espaços privatizados e cercados, com a ideia de que “melhorar de vida” é estar cada vez mais longe dos “outros”.
Durante a pandemia eu morava em São Paulo e, na páscoa, uma moradora do prédio colocou nas portas dos vizinhos raminhos com doces florzinhas. Foi a coisa mais adorável que eu vi no prédio por muito tempo. Eu encontrava com ela às vezes na portaria, no cantinho de 5m² onde ela balançava pra frente e pra trás o carrinho do bebê dela, quis fazer amizade, fiquei com vergonha, “é isso que esse modelo de sociedade faz, atrofia nossos músculos de aproximação”, eu pensei. Eu também planejo a tempos criar uma gincana no prédio “interfone ao número XX e ouça uma poesia”. Seria assim, direto e reto, o interfone ia tocar, eu ia deixar uma pilha de livros de poesia em uma mesinha do lado, leria, desligaria e sairíamos todos melhores dessa breve experiência. Mas eu não sou proprietária de um imóvel e tenho medo de que a vizinhança me considere uma psicopata e me expulse, então sigo lendo poesias apenas para as pessoas que me conhecem e sabem que minha loucura é perfeitamente normal.
Uma ótima viagem a todos! :)
ps. especialmente pra vocês que quiseram tocar esse interfone:
“A memória lê o dia
de trás para frente
acendo um poema em outro poema
como quem acende um cigarro no outro
que vestígio deixamos
do que não fizemos?
como os buracos funcionam?
somos cada vez mais jovens
nas fotografias
”de trás para frente
a memória lê o dia”.
Ana Martins Marques, O livro das dessemelhanças
:Dicas a bordo:
~ Eu atualizei a página about dessa newsletter e ficou uma graça!
~ Quem são os seus vizinhos?
~ O paradoxo do centro histórico de Floripa
~ Porque caminhar nos ajuda a pensar
~ Um instagram inusitado e perfeito com curadorias de coisas pra fazer no centro de São Paulo
~ Os outros, série sobre vizinhos da Globoplay, imperdível e sobre a qual eu escrevi aqui.
Até a próxima!
Luísa
Dos meus anos em São Paulo, fiz amigos e uma rede de apoio incrível que tento continuar cultivando.
Das vizinhanças, ficaram histórias e a vontade de que eles não sejam nada além disso, histórias de algum período.
Como quando eu morava com um amigo na Lapa (numa casa sem autorização e com ordem de despejo) e os vizinhos brigavam entre si, uma defendendo nossa permanência e outro nos querendo longe dali.
Na Zona Norte, que as vizinhas saíram no tapa e puxando cabelos por causa de briga por homem, uma delas quis quebrar tudo quando flagrou meu outro amigo dormindo com o marido dela.
Na Zona Leste, que nosso vizinho nos odiava e passou a nos amar depois que tivemos uma bad trip seguida de paranóia e chamamos a polícia jurando que as mesmas pessoas que haviam sequestrado nossos amigos (que não tinham sido sequestrados) estavam fazendo nosso vizinho de refém. Ele ficou muito emocionado por querermos protegê-lo.
No centro, eu e meu vizinho nos tornamos amantes. Era muito conveniente só pegar o elevador. Até que ele se apaixonou e se tornou um stalker, aí a história virou meio pesadelo.
Eu gostava do senso de comunidade que ainda sentia na Lapa e na Zona Norte, mas amava mais o senso de anonimato, depois de ter saído do interior.
PS: ADOREI SEU ABOUT LUISA! FICOU DEMAIS ❤️
Menina, ando pensando bastante nessa história de ter pessoas por perto com as quais posso conectar e conviver. Morando em São Paulo nos últimos anos, percebo que não cultivei vizinhanças, e aliás mal cultivei um grupo coeso de amigos que se acompanhe e se cuide. Às vezes piro pensando no que preciso ou posso fazer para cultivar relações mais frutíferas, e lendo teu texto me dei conta que quase nunca considerei seriamente a possibilidade de buscar conexão com meus vizinhos... 🥲