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Está praticamente na origem das cidades: feiras, trocas de bens e produtos, comércio. Depois a gente vai ver a residência ficar na parte de cima da casa-sobrado, a lojinha na parte térrea e as pessoas circulando pelas ruas, vendo as coisas nas vitrines. As pessoas circulavam pelas ruas pelos mais diversos motivos. Não parece, mas esse cenário está ligado ao debate do momento quando eu decidi estudar arquitetura, no início dos anos dois mil, que era o tema da privatização do espaço público. Ou seja, como tantas coisas que eram feitas em locais públicos, de livre acesso e de encontro coletivo, haviam passado para a esfera privada. Falava-se não só de educação e saúde, mas também de lazer e cultura (parques e festas fechadas), restaurantes e bares com pouco contato com a rua, teatro e cinemas na beira da calçada fechando em uma velocidade exponencial (Retratos Fantasmas, o filme mais recente do Kleber Mendonça Filho, fala disso), até mesmo do carnaval de rua (quem vê hoje, pensa que as ruas de Rio e São Paulo sempre foram lotadas nessa época, não é?!) E tinha ele, o shopping center.
Um gigante dos anos 1990, ele era visto como um genuíno inimigo urbano. Centros comerciais americanizados, com convenientes ar condicionados gelados, sorvete e macdonalds se tornaram o ápice do lazer nas cidades médias Brasil afora, muitas vezes sendo o único lugar onde encontrar um cinema. O que se via eram prédios “fortificados”, muitas vezes fechados ao exterior e cercados por estacionamentos enormes. Comumente, o acesso de pedestres era evitado, quando não proibido. O comércio local, de bairro, dificilmente conseguia competir com a lógica de funcionamento das grandes redes e ia fechando nos entornos desses empreendimentos. Internamente, o ambiente era todo controlado: as escadas posicionadas longe uma da outra, forçando a circulação, não havia iluminação ou ventilação naturais, as janelas eram inexistentes pra você perder a noção do tempo enquanto comprava, comprava, comprava. A vida privatizada, as casas de condomínio e a circulação por automóvel eram, naquele época (e ainda é hoje em alguns lugares), parâmetros de sucesso (mas - pra efeito de curiosidade - tem um cinegrafista no youtube que documenta shopping malls abandonados nos EUA).
Alguns anos se passaram até o século 21 realmente começar. Por volta de 2013 vemos uma retomada da rua enquanto esfera pública: occupy wall street em NY, 15M em Madri, manifestações de junho no Brasil e volta a tomar corpo nas cidades mundo afora a ideia de que a presença das pessoas, nas ruas, tinha um valor coletivo importante. Mais alguns anos se passaram e chegamos em 2020 com a cidade em suspensão. As compras online ganham força e foram essenciais pra gente sobreviver à pandemia, mas algumas coisas saíram de mão, não? Quando eu vi, todo mundo que eu conhecia estava fazendo compras em lojas na china (?) que vendiam “tudo e qualquer coisa” (?) depois esperando meses (?) por essas coisas pois paravam em curitiba (?) quê-que-aconteceu.
Eu fui pra Foz do Iguaçu esse ano. Um lugar que eu sempre vi como mágico - umas cachoeiras gigantes, uma natureza revolta, uma fronteira tríplice. E tudo que as pessoas me perguntavam sobre a viagem era “e o que você vai comprar?”. No final eu já me sentia um certo E.T. repetindo “eu não vou comprar nada”. Não, nada, nada. Eu não preciso da garrafa de vinho importada Y (não tenho um paladar refinado assim), não quero um fone de ouvido novo (já tenho), não vou comprar uma assistente virtual, com nome de mulher, que acata ordens (dispenso). Como todo mundo, eu sou bombardeada todo dia de novas demandas de coisas pra comprar, mas tento não orientar meus gastos para elas. Talvez porque meus pais eram meio atípicos e eu cresci meio desvinculada dessa lógica (escrevi um pouco sobre isso aqui). Meu irmão, meus pais e eu nunca fizemos passeios em família que eram voltados para compras ou coisas tipo ‘passeio no shopping’. Também não tínhamos por hábito atrelar datas festivas a presentes materiais, como Natal ou Dia das Mães. Os presentes eram dados em momentos afetivos, quando se lembrava da pessoa, ou por necessidade. Daí pedíamos, ganhávamos e segue o baile. Mas talvez seja também porque o algoritmo do instagram me ofereça coisas ridículas tipo roupas que custam o preço do meu aluguel (?). Ou mesmo porque eu realmente use meu dinheiro mais pra comprar comida do qualquer outra coisa.
É difícil escrever qualquer coisa nesse sentido sem parecer uma pessoa maluca que é contra compras onlines e o ponto realmente não é esse, mas o quanto a nossa experiência urbana (e de vida em geral) tem sido competentemente substituída por ofertas mais “diretas” e “simples” que “facilitam” a vida por algum lado, mas a reduzem por outros. A reflexão desse texto foi provocada pela leitura da ensaísta canadense Jia Tolentino em seu livro “Falso Espelho, reflexões sobre a autoilusão”, especialmente pelo sexto ensaio, “A história de uma geração em sete golpes”. Golpes atrás de golpes que construíram a auto-ilusão da nossa geração milennium, de muitas saídas rápidas, especialmente ligadas à consumo e sucesso, mas eminentemente falsas (do Fyre Festival ao financiamento universitário, e, claro, as redes sociais, dentre outras).
O fim de ano chegou, eu vim descansar na casa dos meus pais e vi o filme “O mundo depois de nós”. Esse texto já estava rascunhado quando eu assisti a análise do PH Santos que veio na hora certa:
“O filme nos diz que, se não tratarmos nosso passado como lixo, talvez tenhamos nossas vontades contempladas, teremos nossos desfechos, em um mundo onde cada vez mais o desfecho não existe (…) tudo que aquela menina queria era o fim daquela história, que fez ela se sentir parte daquilo. Assim, o velho DVD de Friends, com seu menu antiquado, representa mais que uma relíquia - ele conecta a garota à um mundo que está desaparecendo. (…). A gente construiu o nosso próprio cativeiro, o nosso cativeiro digital, e estamos presos às não-coisas. A uma casa que a gente aluga e não sabe nem com quem estava falando, por isso não consegue reconhecer a pessoa que chega.
No nosso cativeiro virtual, estamos presos de um modo que só coisas conseguem nos libertar disso, e essas mesmas não-coisas são usadas contra nós, como é o caso do cyberattack que acontece no filme. E o filme sugere que a libertação desses cativeiros digitais pode ser a chave pra enfrentar os desafios da nova ordem mundial e do novo modo de ver a vida. (…) em outras palavras, não é que a gente precise excluir as não-coisas da nossa vida, não dá mais tempo, elas estão aí e já dominaram, mas a gente precisa SE excluir delas. Ou isso, vão nos ilhar, nos prender e nos tornar cativos do querer de outro, jamais do nosso”.
É claro - se você perguntar pro meu namorado, ele vai dizer que eu sou consumista. Eu tenho minhas manias e chatices de coisas que faço questão. Mas eu detesto comprar coisas, especialmente quando me fazem acreditar que eu preciso e depois eu me arrependo. E, realmente, a minha melhor experiência de buscar e comprar alguma coisa ainda é na rua, no tempo da rua, atravessa pelo clima, pelo corpo em deslocamento, lidando com os empecilhos que freiam a velocidade do mundo digital - e seus bombardeios. Então que pelo menos eu compre vendo a vida lá fora, trocando ideia com o funcionário, vendo gente andando, usando e abusando de tudo que o mundo material tem de útil pra oferecer, tudo que a vida real perdeu nos anos de pandemia e que faço questão de não “tomar por garantido” antes que eu perca de vista. Vitrines, reunião e aulas presenciais, cardápio físico, feira de rua, relógio de pulso, agenda de papel, praia do flamengo banhável (!) - em 2024 eu espero ver mais a cidade de carne e osso.
Uma ótima viagem a todos! :)
Avisos de fim de ano 🌟
Essa é a última edição do ano! Esse foi um ano especial, a newsletter cresceu muito, obrigada a todo mundo que compartilhou e bem-vindos aos novos leitores!
Em janeiro eu tiro férias, reviso materiais, ideias, textos, e volto em fevereiro com mais gás.
Eu também decidi tirar o apoio financeiro contínuo, ao menos por hora, pra poder usar esse espaço de forma mais livre. Obrigada a todos que apoiaram até aqui! Vocês podem continuar compartilhando e convidando leitores livremente.
E se você chegou há pouco tempo, deixo aqui uma listinha dos melhores textos do ano.
Boas festas pra vocês!
Melhores do ano - 2023
:Dicas a bordo:
~ Por hoje, apenas dois vídeos mais longos. São longos, mas são vídeos-ensaio, que exploram temáticas relacionadas ao que escrevi aqui a partir das obras: PH Santos, sobre mundo virtual e futuro, através do filme “O mundo depois de nós”. Ora Tiago, sobre tecnologia e mundo virtual a partir de Black Mirror. Recomendo demais!
Até a próxima!
Luísa
um dia eu vou escrever sobre a minha relação com o consumo, porque toda vez que meu aparelho de celular parece falhar e eu olho pros das pessoas ao meu redor, eu me sinto um et, mas quando procuro um novo aparelho para comprar acho tudo absolutamente desnecessário e só aguardo o dia em que o meu não vai mais ligar e a compra se tornará inevitável (como toda vez que preciso comprar algo que acho supérfluo).
mas queria mesmo era contar de um episódio de podcast sobre shoppings nos subúrbios dos estados unidos e que tem um pouco a ver com ter sido criança nos anos 90 quando a nossa sociabilidade foi talvez migrando da rua pra essas caixas (ainda vivi um modelo híbrido, por sorte). anos depois, fui trabalhar em uma livraria no shopping mais perto de casa e pedi demissão no último dia do período de experiência. toda a relação trabalhista ali era horrível mas perceber que poderia estar sol, chuva, neve, dia, noite, apocalipse lá fora e eu não saberia foi demais para mim. o episódio é esse: https://99percentinvisible.org/episode/meet-us-by-the-fountain/
Oi, Luísa! Tudo bem? Me identifiquei muito com o que escreves. Também venho de uma família que nunca frequentou shopping, mas que passeava pelo centro da cidade e aí, sim, eventualmente comprava algo, mas numa lógica outra, né? Hoje moro em Portugal e aqui está acontecendo um debate muito forte para preservar o comércio tradicional, sobretudo em Lisboa e no Porto, onde o turismo avança de forma predatória e ameaça esses espaços, as pessoas e a própria identidade dos lugares. Escrevi sobre isso na minha newsletter Bom Proveito e te convido a ler (vou deixar o link abaixo). Embarquei no teu trem, ou comboio como diz-se cá. Ótimo 2024! ✨
https://bomproveito.substack.com/p/8-lojas-historicas-em-lisboa